The Project Gutenberg EBook of O Livro de Cesario Verde, by Cesario Verde

Copyright laws are changing all over the world. Be sure to check the
copyright laws for your country before downloading or redistributing
this or any other Project Gutenberg eBook.

This header should be the first thing seen when viewing this Project
Gutenberg file.  Please do not remove it.  Do not change or edit the
header without written permission.

Please read the "legal small print," and other information about the
eBook and Project Gutenberg at the bottom of this file.  Included is
important information about your specific rights and restrictions in
how the file may be used.  You can also find out about how to make a
donation to Project Gutenberg, and how to get involved.


**Welcome To The World of Free Plain Vanilla Electronic Texts**

**eBooks Readable By Both Humans and By Computers, Since 1971**

*****These eBooks Were Prepared By Thousands of Volunteers!*****


Title: O Livro de Cesario Verde

Author: Cesario Verde

Release Date: August, 2005 [EBook #8698]
[Yes, we are more than one year ahead of schedule]
[This file was first posted on August 2, 2003]

Edition: 10

Language: Portuguese

Character set encoding: ASCII

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O LIVRO DE CESARIO VERDE ***




Produced Joao Miguel Neves from images of the National Digital
Library project from the National Library of Portugal.




O LIVRO DE CESARIO VERDE


Prefacio


A JORGE VERDE

Aqui deponho em suas maos e debaixo dos seus labios o livro do seu
irmao. A minha "obra" terminou no dia em que elle saiu da nossa
doce amizade para a nossa terrivel amargura: morri, meu querido
Jorge--deixe-me chamar assim ao irmao do meu querido Cesario;--morri
para as alegrias do trabalho, para as esperancas dos enganos doces!
O desmoronamento fez-se, a um tempo, no espirito e no coracao! Dos
restos do passado deixe-me offerecer-lhe a dedicacao extremada:
peca-me o sacrificio; e, quando no decorrer da vida, se lembrar de
nos, tenha este pensamento consolador:--A grande alma de meu irmao
soube impor-se a um coracao endurecido; e tenha este outro pensamento:
--Mas nao estava de todo endurecido o coracao que soube amal-a.

Adeus, meu querido Jorge!

S.P.

20 de julho de 1886.

Encontramo-nos pela primeira vez no Curso Superior de Lettras. Foi
em 1873. Cesario Verde marticulara-se no Curso em homenagem as
Lettras, como se as Lettras la estivessem--no Curso. Eu matriculara-me,
com a esperanca de habilitar-me um dia a conquista de uma cadeira
disponivel. Encontramo-nos e ficamos amigos--para a vida e para a
morte.

Para a vida e para a morte.

Tenho de fallar de mim, se eu pretendo fallar de Cesario Verde. Elle
nao teve, desde aquelle dia--ha treze annos--maior amigo do que eu
fui; e sobre esta mesa onde eu estou escrevendo, as 10 horas da
noite d'este formidavel dia glacial--20 de Julho de 1886, dia do
seu enterro,--sobre esta mesa onde eu estou escrevendo tenho estas
palavras suas de ha poucos dias:--"E como se de o caso de tu seres
o mais dedicado dos meus amigos..." Tenho aqui essas palavras:
ellas constituem a justificacao dos meus solucos de ha poucas horas,
alli, no cemiterio visinho onde elle dorme--o Cesario!--a sua
primeira noite redimida...

Eu fui, pois, a luctar nas grandes batalhas da Desgraca, n'aquelle
anno para mim terrivel de 1874. Fui-me, a dezenas de leguas de
Lisboa. Elle ficou. E no dia em que eu medi forcas com as avancadas
do meu destino, a inquietacao invadiu o espirito e o coracao de
Cesario Verde, por modo que ja eu assoberbara com o meu desprezo
a desventura pertinaz e ainda elle nao vingara libertar-se do peso
de seus cuidados e afflicoes. Durante annos escreveu-me centenares
de paginas--commentarios sobre os meus infortunios, conselhos do
seu espirito lucidissimo, sobresaltos do seu coracao fraternal. Um
dia, trocamos estas palavras:--"Como tu tens tempo, meu amigo, para
soffrer tanto!"--"Como tu tens tempo, meu amigo, para me acompanhar
no soffrimento!".

E indispensavel ter conhecido intimamente Cesario Verde para
conhecel-o um pouco. Os que apenas lhe ouviram a phrase rapida,
imperiosa, dogmatica, mal podem imaginar o fundo de tolerancia
espectante d'aquelle bello e poderoso espirito. Elle tinha o furor
da discussao--a toda a hora. Eu careco de preparar-me durante horas
para a simples comprehensao. As exigencias do meu caro polemista
irritavam-me. Eu respondia ao acaso; mas acontecia por vezes que o
sorriso ligeiramente ironico do perseguidor expandia-se n'um bom e
largo sorriso de convencido; e entao--meu querido amigo! meu santo
poeta!--elle saudava com um enthusiasmo de creanca amoravel o que
elle chamava o meu triumpho! Nao hesitava em confessar-se vencido;
e congratulava-se commigo--porque eu o vencera inconscientemente.
A generosa alma chamava aquillo a minha superioridade!

Os campos, a verdura dos prados e dos montes; a liberdade do homem
em meio da natureza livre: os seus sonhos amados; as suas realidades
amadas! Quando aquelle artista delicado, quando aquelle poeta de
primeira grandeza julgava em raros momentos sacrificar a Arte aos
seus gostos de lavrador e de homem pratico, succedia que as cousas
do campo, da vida pratica assimilavam a fecundante seiva artistica
do poeta: e entao dos fructos alevantavam-se aromas que disputavam
foros de poesia aos aromas das flores. O mesmo sopro bondoso e
potente agitava e fecundava os milharaes e as violetas e os trigaes
e as rosas! A bondade summa esta no poeta,--mais visivel, pelo menos,
do que em Deus.

Artista--e de alta plana! Eu pude vel-o cioso de seus direitos e
reivindicando-os com tanto de ingenuidade quanto de vigor. E pois
que um ligeiro esboco, precedendo mais detido trabalho, estou
elaborando sobre os tracos mais salientes d'aquella individualidade,
nao me dispensarei d'esta indicripcao:

Ha dois mezes escrevia-me Cesario Verde: "O Doutor Sousa Martins
perguntou-me qual era a minha occupacao habitual. Eu respondi-lhe
naturalmente: Empregado no commercio. Depois, elle referiu-se a
minha vida trabalhosa que me distrahia, etc. Ora, meu querido amigo,
o que eu te peco e que, conversando com o dr. Sousa Martins, lhe
des a perceber que eu nao sou o sr. Verde, empregado no commercio.
Eu nao posso bem explicar-te; mas a tua amizade comprehende os meus
escrupulos: sim?..."

E eu fui a beira de Sousa Martins e perguntei-lhe se o poeta Cesario
Verde podia ser salvo. O grande e illustre medico tranquilisou-me
--e apunhalou-me em pleno peito:--Que o poeta Cesario Verde estava
irremediavelmente perdido!

Meu poeta! Meu amigo! Tu estavas condemnado no tribunal superior,
quando eu te mentia e ao publico e a mim proprio: estavas condemnado,
meu santo! Mas podia viver tranquillo o teu orgulho de artista: o
teu medico sabia que o poeta Cesario Verde eras tu proprio, meu
pallido agonisante illudido!

A esthesia, o processo artistico e a individualidade d'este admiravel
e originalissimo poeta merecem a Critica independente uma attencao
desvelada. Eu nao hesito em vincular o meu nome a promessa de um
tributo que a obra de Cesario Verde esta reclamando.

       *       *       *       *       *

E todavia, nao pode o meu espirito evadir-se a idea consoladora de
que e um sonho isto que o entenebrece! Nao podes evadir-te, o meu
espirito amargurado! mas eu vou libertar-te para a dor!

Foi as cinco da tarde--ainda agora. Caia o sol a prumo sobre a
estrada do Lumiar e nos vinhamos arrastando a nossa miseria,--nos
os vivos; o morto arrastava a sua indifferenca. Chegamos, com duas
horas de amargura, alli ao porto de abrigo e de descanco. Veio o
ceremonial tragico, o latim, o encerramento. Caso de uma eloquencia
terrivel: Entre algumas dezenas de homens nao houve uma phrase
indifferente--e em dado momento explosiram solucos n'um enternecimento
que ageitava a loira cabeca do cadaver la dentro do caixao--como
as maos da mae lh'a ageitaram infantil, no travesseiro, ha vinte
e quatro annos, e moribunda ha vinte e quatro horas!

Eram sete horas da tarde, o minha alma triste! Eu fui-me a chorar
velhas lagrimas de gelo, avocadas por lagrimas de fogo recemnascidas.
Fui-me por entre os tumulos, a pedir ao meu Deus de ha trinta annos
que que me desse forca, que me desse forca nova,--pois que se
prolonga o captiveiro! E a sos, caminhando por entre os tumulos,
ao cair da noite, pareceu-me comprehender que nos recebemos forca
nova em cada nova dor, para soffrermos de novo--do mesmo modo que
o alcatruz de uma nora se despeja para encher-se, para despejar-se
--sem saber porque...

20 de Agosto

       *       *       *       *       *

A morada nova do Cesario e de pedra e tem uma porta de ferro, com
um respiradouro em cruz;--rua n. 6 do cemiterio dos Prazeres. A
porta esta um arbusto da familia dos cyprestes--um brinde ao meu
querido morto. Eu offerecera uma palmeira que o vento esgarcou ao
terceiro dia, e tive de escolher uma especie resistente, ca da
minha raca--funebre e resistente. Esta verdejante e vigorosa a
pequenina arvore, e de longe e uma sentinella perdida da minha doce
amizade religiosa. De longe vou ja perguntando a nossa arvore:--Esta
bom o nosso amigo?... E ella inclina os pequeninos trocos, com a
gravidade do cypreste:--Bem; nao houve novidade em toda a noite...

E que eu vou pelas tardes visital-o; e saber como elle passou e
todo um meu cuidado, como e toda a minha alegria o bem-estar
d'aquella hora em que nao ha risos. Nao fomos risonhos--o Cesario
e eu. As nossas horas de convivencia foram tristes e severas. Depois
da morte do Cesario eu deixei de viver nos dominios onde elle sentira
consolacoes, alentos, esperancas, onde elle imaginara renascimentos,
horisontes, claridades novas. Nunca mais publiquei uma palavra que
se lhe nao consagrasse--ao meu querido morto. Em face d'aquelle
cadaver eu senti alastrar-se no meu pobre ser fatigado o bem-amado
desprezo da vida. O meu santo esta alli,--esta resignado: e tudo.
Vos todos, que o amastes, sabei que elle esta resignado--o nosso
querido morto impassivel!

E n'uma dessas tardes, alguns dias depois da sua morte, eu aproximei
da porta de ferro a minha pobre cabeca esbrazeada e olhei para
dentro do jazigo, involuntariamente; e entao, como quer que eu
visse la a dentro do jazigo alguns caixoes arrumados, e como eu
acertasse em descobrir o caixao do Cesario, os solucos despedacaram-se
contra a minha garganta, n'uma affliccao immensa e cruel. E foi
entao que a voz rouca e enfraquecida do Cesario--lembram-se da voz
d'elle?--pronunciou distinctamente la a dentro do caixao:--"Se
natural, meu amigo; se natural!"

Era a voz do Cesario; era a sua voz tremente e doce, o meu sagrado
horror inconsciente! Debrucei-me contra a porta do jazigo e suppliquei
n'uma angustia:--"Fala! Dize! Falla, outra vez, meu amigo!" Nao se
reproduziu o doloroso encanto. Apenas uma especie de marulho brando,
um arrastar de folhagem resequida--e o morto na paz da Morte!

Vao ja decorridos dez annos sobre um periodo de alguns mezes serenos
da minha via dolorosa. Eu viera a conquistar a certeza de que nao
havia luz misericordiosa para a noite que me vem acompanhando e
torturando os olhos avidos, desde o berco a sepultura redemptora.
Cheguei aqui, a cidade maldita da minha primeira hora e trazia o
sonho de uma aurora pacifica de vida nova no meu pobre espirito
illudido. A aurora fez-se com um desabamento de esperancas: a
crueldade bestial que se debrucara sobre o meu primeiro dia nao
estava arrependida, nem fatigada: a perseguicao renasceu. E quando
eu, no singular desespero dos esmagados em sua crenca, pensei na
Morte como no abrigo antecipado--querido abrigo inevitavel!--a voz
de Cesario foi a voz evocadora para a continuacao do soffrimento
--do soffrimento amparado e protegido...

Protegido! A proteccao foi a maior da grande alma serena para a
pobre alma abatida: foi de lagrimas que se confundiram com as minhas
lagrimas; foi aquelle sorriso triste de resignacao, consagrado as
minhas amarguras,--que para o Cesario nao foram mysteriosas; foi o
aperto de mao robusto, na vertigem do combate; foi a voz firme e
severa na hora dos desfallecimentos; foi o reflexo permanente que
a minha angustia encontrou na sua.

Ah, santo! Ah, meu santo! Ah, meu puro e meu grande! Ah, meu forte!
Vae-se na corrente, desfallecido, se nos nao troveja nos ouvidos a
voz reanimadora! Vae-se na corrente,--que o sei eu! Mas tu, depois
do grito salvador, tinhas um applauso vibrante la do fundo da tua
grandeza e da tua generosidade. E tu sabias que me salvara a tua
mao, a tua palavra, a tua alma de justo, a tua face que eu nao
quizera ver, contrahida e severa, retraindo-se perante o quadro
da minha fraqueza! Tu bem o sabias,--forte, bom, generoso, nobre,
sempre bom--e todavia sempre justo!

A crise mais feroz atravessei-a, pois, abrigado,--abrigado pela sua
voz amiga. Eu tive de luctar com a lenda de rebelliao, com a
desconfianca dos homens praticos, com o odio dos pequeninos malvados
offendidos em seus orgulhos e desmascarados em suas hypocrisias:
conseguintemente, com a suppressao do trabalho,--do pao,--com a
calumnia, com a intriga, com todas as armadilhas a minha colera,
com todas as ciladas a minha fe... Ah, perdidos em paiz de Cafres!
Mal conceberieis o horror de uma lucta como aquella, de todos os
dias de dez annos, em paiz de conta aberta no bazar da Civilisacao!

Hoje, o meu santo amigo esta alli em baixo, na sua morada nova,
esperando... Espera que eu va dizer-lhe dos horisontes novos abertos
a consciencia dos justos; espera que eu va dizer-lhe as victorias da
Justica absoluta--da Justica illuminada e serena;--espera que eu va
dizer-lhe as victorias do Trabalho, da Razao, da Sciencia, da
Sinceridade, do Amor: os homens reconciliados, esclarecidos, a
Natureza convertida em Progresso, Deus explicado, o Futuro illuminado,
a Vida possivel, A Mulher fortalecida, o Homem abrandado, as luctas
supprimidas, o concerto da Terra desentranhando-se em harmonias
reconhecidas, a Bondade convertida em norma, os Direitos e os Deveres
supprimidos pela Igualdade: os seus sonhos, a sua fe, o seu horisonte,
o seu amor!

Esta alli em baixo, esperando... Eu, mensageiro triste, nao saberei
dizer-lhe o ascender dos espiritos, e so poderei levar-lhe no meu
abatimento a demonstracao da minha pouca fe, aggravada pela espantosa
amargura d'estes ultimos dias,--d'estas ultimas horas. As visoes
do poeta hao de emmurchecer confundidas com as ultimas rozas que a
minha pobre mao tremente e desfallecida lhe depora no tumulo, e os
restos da minha fe hao-de misturar-se com o po accumulado a entrada
do seu tumulo pelo Nordeste--menos frio do que a minha alma succumbida!

       *       *       *       *       *

Silva Pinto.





Os versos




I

CRISE ROMANESCA


DESLUMBRAMENTOS

Milady, e perigoso contemplal-a,
Quando passa aromatica e normal,
Com seu typo tao nobre e tao de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que n'isso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solemnidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...

Em si tudo me attrae como um thesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lucido perfil!

Ah! Como m'estontea e me fascina...
E e, na graca distincta do seu porte,
Como a Moda superflua e feminina,
E tao alta e serena como a Morte!...

Eu hontem encontrei-a, quando vinha,
Britannica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sosinha,
E com firmeza e musica no andar!

O seu olhar possue, n'um fogo ardente,
Um archanjo e um demonio a illuminal-o;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pello d'um regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas maos,
O modo diplomatico e orgulhoso
Que Anna d'Austria mostrava aos cortezaos.

E emfim prosiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramatica, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chamma
Seu ermo coracao, como um brilhante.

Mas cuidado, milady, nao se afoite,
Que hao-de acabar os barabaros reaes;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vinganca agucam os punhaes.

E um dia, o flor do Luxo, nas estradas,
Sob o setim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, allucinadas,
E arrastando farrapos--as rainhas!



SEPTENTRIONAL

Talvez ja te esquecesses, o bonina,
Que viveste no campo so commigo,
Que te osculei a bocca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.

Que fugiste commigo da Babel,
Mulher como nao ha nem na Circassia,
Que bebemos, nos dois, do mesmo fel,
E regamos com prantos uma acacia.

Talvez ja te nao lembres com desgosto
D'aquellas brancas noites de mysterio,
Em que a lua sorria no teu rosto
E nas lages que estao no cemiterio.

Quando, a brisa outonica, como um manto,
Os teus cabellos d'ambar desmanchados,
Se prendiam nas folhas d'um acantho,
Ou nos bicos agrestes dos silvados,

E eu ia desprendel-os, como um pagem
Que a cauda solevasse aos teus vestidos;
E ouvia murmurar a doce aragem
Uns delirios d'amor, entristecidos;

Quando eu via, invejoso, mas sem queixas,
Pousarem borbeletas doudejantes
Nas tuas formosissimas madeixas,
D'aquellas cor das messes lourejantes,

E no pomar, nos dois, hombro com hombro,
Caminhavamos sos e de maos dadas,
Beijando os nossos rostos sem assombro,
E colorindo as faces desbotadas;

Quando ao nascer d'aurora, unidos ambos
N'um amor grande como um mar sem praias,
Ouviamos os meigos dithyrambos,
Que os rouxinoes teciam nas olaias,

E, afastados da aldeia e dos casaes,
Eu comtigo, abracado como as heras,
Escondidos nas ondas dos trigaes,
Devolvia-te os beijos que me deras;

Quando, se havia lama no caminho,
Eu te levava ao collo sobre a greda,
E o teu corpo nevado como o arminho
Pesava menos que um papel de seda...

E foste sepultar-te, o seraphim,
No claustro das Fieis emparedadas,
Escondeste o teu rosto de marfim
No veu negro das freiras resignadas.

E eu passo, tao calado como a Morte,
N'esta velha cidade tao sombria,
Chorando afflictamente a minha sorte
E prelibando o calix da agonia.

E, tristissima Helena, com verdade,
Se podera na terra achar supplicios,
Eu tambem me faria gordo frade
E cobriria a carne de cilicios.



MERIDIONAL

Cabellos

O vagas de cabello esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o crystal d'um lago refulgente
E a rude escuridao d'um largo e negro mar;

Cabellos torrenciaes d'aquella que m'enleva,
Deixae-me mergulhar as maos e os bracos nus
No barathro febril da vossa grande treva,
Que tem scintillacoes e meigos ceos de luz.

Deixae-me navegar, morosamente, a remos,
Quando elle estiver brando e livre de tufoes,
E, ao placido luar, o vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidoes.

Daixae-me naufragar no cimo dos cachopos
Occultos n'esse abysmo ebanico e tao bom
Como um licor rhenano a fermentar nos copos,
Abysmo que s'espraia em rendas de Alencon!

E o magica mulher, o minha Inegualavel,
Que tens o immenso bem de ter cabellos taes,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbavel,
Entre o rumor banal dos hymnos triumphaes;

Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exhalas da cabeca erguida com fulgor,
Perfume que estontea um millionario avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.

Eu sei que tu possues balsamicos desejos,
E vaes na direccao constante do querer,
Mas ouco, ao ver-te andar, melodicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e elanguescer.

E a tua cabelleira, errante pelas costas,
Supponho que te serve, em noites de verao,
De flaccido espaldar aonde te recostas
Se sentes o abandono e a morna prostracao.

E ella hade, ella hade, um dia, em turbilhoes insanos
Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor
Que antigamente deu, nos circos dos romanos,
Um oleo para ungir o corpo ao gladiador.

       *       *       *       *       *

O mantos de veludo esplendido e sombrio,
Na vossa vastidao posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E quero asphyxiar-me em ondas de prazer.



IRONIAS DO DESGOSTO

"Onde e que te nasceu"--dizia-me ella as vezes--
"O horror calado e triste as cousas sepulcraes?
"Porque e que nao possues a verve dos Francezes
"E aspiras, em silencio, os frascos dos meus saes?

"Porque e que tens no olhar, moroso e persistente,
"As sombras d'um jazigo e as fundas abstraccoes,
"E abrigas tanto fel no peito, que nao sente
"O abalo feminil das minhas expansoes?

"Ha quem te julgue um velho. O teu sorriso e falso;
"Mas quando tentas rir parece entao, meu bem,
"Que estao edificando um negro cadafalso
"E ou vae alguem morrer ou vao matar alguem!

"Eu vim--nao sabes tu?--para gosar em maio,
"No campo, a quietacao banhada de prazer!
"Nao ves, o descorado, as vestes com que saio,
"E os jubilos, que abril acaba de trazer?

"Nao ves como a campina e toda embalsamada
"E como nos alegra em cada nova flor?
"E entao porque e que tens na fronte consternada
"Um nao sei que tocante e enternecedor?

E eu so lhe respondia:--"Escuta-me. Conforme
"Tu vibras os crystaes da bocca musical,
"Vae-nos minando o tempo, o tempo--o cancro enorme
"Que te ha de corromper o corpo de vestal.

"E eu calmamente sei, na dor que me amortalha,
"Que a tua cabecinha ornada a Rabagas,
"A pouco e pouco ha de ir tornando-se grisalha
"E em breve ao quente sol e ao gaz alvejara!

"E eu que daria um rei por cada teu suspiro,
"Eu que amo a mocidade e as modas futeis, vans,
"Eu morro de pezar, talvez, porque prefiro
"O teu cabelo escuro as veneraveis cans!"



HUMILHACOES
(De todo o coracao--a Silva Pinto)

Esta aborrece quem e pobre. Eu, quasi Job,
Acceito os seus desdens, seus odios idolatro-os;
E espero-a nos saloes dos principaes theatros,
        Todas as noites, ignorado e so.

La canca-me o ranger da seda, a orchestra, o gaz;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos,
E emquanto vao passando as cortezans e os brilhos,
        Eu analyso as pecas no cartaz.

Na representacao d'um drama de Feuillet,
Eu aguradava, junto a porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e van que me deslumbra
        Saltou soberba o estribo do coupe.

Como ella marcha! Lembra um magnetisador.
Rocavam no veludo as guarnicoes das rendas;
E, muito embora tu, burguez, me nao entendas,
        Fiquei batendo os dentes de terror.

Sim! Por nao podia abandonal-a em paz!
O minha pobre bolsa, amortalhou-se a idea
De vel-a aproximar, sentado na platea,
        De tel a n'um binoculo mordaz!

Eu occultava o fraque usado nos botoes;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
--Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
        E ouviam-se ca fora as ovacoes.

Que desvanecimento! A perola do Tom!
As outras ao pe d'ella imitam as bonecas;
Tem menos melodia as harpas e as rabecas,
        Nos grandes espetaculos do Som.

Ao mesmo tempo, eu nao deixava de a abranger;
Vi-a subir, direita, a larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
        Que o chao se abrisse para me abater.

Sai; mas ao sair senti-me atropellar.
Era um municipal sobre um cavallo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
        Cresci com raiva contra o militar.

De subito, fanhosa, infecta, rota, ma,
Poz-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
--Meu bom senhor! Da-me um cigarro? Da?...



RESPONSO

I

N'um castello deserto e solitario,
Toda de preto, as horas silenciosas,
Envolve-se nas pregas d'um sudario
E chora como as grandes criminosas.

Podesse eu ser o lenco de Bruxellas
Em que ella esconde as lagrimas singellas.

II

E loura como as doces escocezas,
D'uma belleza ideal, quasi indecisa;
Circumda-se de luto e de tristezas
E excede a melancolica Artemisa.

Fosse eu os seus vestidos afogados
E havia de escutar-lhe os seus peccados.

III

Alta noite, os planetas argentados
Deslisam um olhar macio e vago
Nos seus olhos de pranto marejados
E nas aguas mansissimas do lago

Podesse eu ser a lua, a lua terna,
E faria que a noite fosse eterna.

IV

E os abutres e os corvos fazem giros
De roda das ameias e dos pegos,
E nas salas resoam uns suspiros
Dolentes como as supplicas dos cegos.

Fosse eu aquellas aves de pilhagem
E cercara-lhe a fronte, em homenagem.

V

E ella vaga nas praias rumorosas,
Triste como as rainhas desthronadas,
A contemplar as gondolas airosas,
Que passam, a giorno illuminadas.

Podesse eu ser o rude gondoleiro
E alli e que fizera o meu cruzeiro.

VI

De dia, entre os veludos e entre as sedas,
Murmurando palavras afflictivas,
Vagueia nas umbrosas alamedas
E acarinha, de leve, as sensitivas.

Fosse eu aquellas arvores frondosas
E prendera-lhe as roupas vaporosas.

VII

Ou domina, a rezar, no pavimento
Da capella onde outr'ora se ouviu missa,
A musica dulcissima do vento
E o sussuro do mar, que s'espreguica.

Podesse eu ser o mar e os meus desejos
Eram ir borrifar-lhe os pes, com beijos.

VIII

E as horas do crepusculo saudosas,
Nos parques com tapetes cultivados,
Quando ella passa curvam-se amorosas
As estatuas dos seus antepassados.

Fosse eu tambem granito e a minha vida
Era vel-a a chorar arrependida.

IX

No palacio isolado como um monge,
Erram as velhas almas dos precitos,
E nas noites de inverno ouvem-se ao longe
Os lamentos dos naufragos afflictos.

Podesse eu ter tambem uma procella
E as lentas agonias ao pe d'ella!

X

E as lages, no silencio dos mosteiros,
Ella conta o seu drama negregado,
E o vasto carmesim dos resposteiros
Ondula como um mar ensanguentado.

Fossem aquellas mil tapecarias
Nossas mortalhas quentes e sombrias.

XI

E assim passa, chorando, as noites bellas,
Sonhando nos tristes sonhos doloridos,
E a reflectir nas gothicas janellas
As estrellas dos ceus desconhecidos.

Podesse eu ir sonhar tambem comtigo
E ter as mesmas pedras no jazigo!

XII

Mergulha-se em angustias lacrimosas
Nos ermos d'um castello abandonado,
E as proximas florestas tenebrosas
Repercutem um choro amargurado.

Unissemos, nos dois, as nossas covas,
O doce castella das minhas trovas!





II

NATURAES




CONTRARIEDADES

Eu hoje estou cruel, frenetico, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrivel! Ja fumei tres massos de cigarros
        Consecutivamente.

Doe-me a cabeca. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravacao nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os acidos, os gumes
        E os angulos agudos.

Sentei-me a secretaria. Alli defronte mora
Uma infeliz, sem, peito, os dois pulmoes doentes;
Soffre de falta d'ar, morreram-lhe os parentes
        E engomma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tao livida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta a botica!
        Mal ganha para sopas...

O obstaculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa d'um jornal me regeitar, ha dias,
        Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais d'uma redaccao, das que elogiam tudo,
        Me tem fechado a porta.

A critica segundo o methodo de Taine
Ignoram-n'a. Juntei n'uma fogueira immensa.
Muitissimos papeis ineditos. A imprensa
        Vale um desdem solemne.

Com raras excepcoes merece-me o epigramma.
Deu meia-noite; e em paz pela calcada abaixo,
Um sol-e-do. Chovisca. O populacho
        Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas as fortunas,
Mas sim, por deferencia a amigos ou a artistas,
Independente! So por isso os jornalistas
        Me negam as columnas.

Receiam que o assignante ingenuo os abandone,
Se forem publicar taes cousas, taes auctores.
Arte? Nao lhes convem, visto que os seus leitores
        Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfructa fama honrosa,
Obtem dinheiro, arranja a sua "coterie";
E a mim, nao ha questao que mais me contrarie
        Do que escrever em prosa.

A adulacao repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos litteratos,
E apuro-me em lancar originaes e exactos,
        Os meus alexandrinos...

E a tisica? Fechada, e com o ferro acceso!
Ignora que a asphyxia a combustao das brazas,
Nao foge do estendal que lhe humedece as casas,
        E fina-se ao desprezo!

Mantem-se a cha e pao! Antes de entrar na cova.
Esvae-se; e todavia, a tarde, fracamente,
Oico-a cantarolar uma cancao plangente
        D'uma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e n'outros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
        Impressas em volume?

Nas lettras eu conheco um campo de manobras;
Emprega-se a reclame, a intriga, o annuncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
        Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a colera. E a visinha?
A pobre engommadeira ir-se-ha deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. E feia...
        Que mundo! Coitadinha!



A DEBIL

Eu, que sou feio, solido, leal,
A ti, que es bella, fragil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
N'uma existencia honesta, de crystal.

Sentado a mesa d'um cafe devasso,
Ao avistar-te, ha pouco, fraca e loura,
N'esta Babel tao velha e corruptora,
Tive tencoes de offerecer-te o braco.

E, quando soccorreste um miseravel,
Eu, que bebia calices d'absintho,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudavel.

"Ella ahi vem!" disse eu para os demais;
E puz-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinaes.

Via-te pela porta envidracada;
E invejava,--talvez que o nao suspeites!--
Esse vestido simples, sem enfeites,
N'essa cintura tenra, immaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarcha.
Triste eu sahi. Doia-me a cabeca;
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exequias d'um monarcha.

Adoravel! Tu muito natural
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, n'um largo arborisado,
Uma estatua de rei n'um pedestal.

Sorriam nos seus trens os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mae, que te ama tanto,
Que nao te morrera sem te casares!

Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma familia, um ninho de socego,
Desejava beijar sobre o teu peito.

Com elegancia e sem ostentacao,
Atravessavas branca, esvelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E d'altos funccionarios da nacao.

"Mas se a atropella o povo turbolento!
Se fosse, por acaso, alli pisada!"
De repente, paraste embaracada
Ao pe d'um numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia estes faceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
uma pombinha timida e quieta
N'um bando ameacador de corvos pretos.

E foi, entao, que eu homem varonil,
Quiz dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que es tenue, docil, reconhecida,
Eu, que sou habil, pratico, viril.



N'UM BAIRRO MODERNO

A Manuel Ribeiro

Dez horas da manha; os transparentes
Matizam uma casa apalacada;
Pelos jardins estancam-se os nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamisada.

Rez-de-chaussee repousam socegados,
Abriram-se, n'alguns, as persianas,
E d'um ou d'outro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papeis pintados,
Reluzem, n'um almoco, as porcelanas.

Como e saudavel ter o seu conchego,
E a sua vida facil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quasi sempre chego
Com as tonturas d'uma apoplexia.

E rota, pequenina, aramafada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmoreo d'uma escada,
Como um retalho de horta agglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a:
Poz-se de pe: resoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodao azul da meia,
Se ella se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado:
"Se te convem, despacha; nao converses.
Eu nao dou mais." E muito descancado,
Atira um cobre livido, oxidado,
Que vem bater nas faces d' uns alperces.

Subitamente,--que visao de artista!--
Se eu transformasse os simples vegetaes,
A luz do sol, o intenso colorista,
N'um ser humano que se mova e exista
Cheio de bellas proporcoes carnaes?!

Boiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz as costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E as portas, uma ou outra campainha
Toca, frenetica, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo organico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeca n'uma melancia,
E n'uns repolhos seios injectados.

As azeitonas, que nos dao o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
Sao trancas d'um cabello que se ageite;
E os nabos--ossos nus, da cor do leite,
E os cachos d'uvas--os rosarios d'olhos.

Ha collos, hombros, boccas, um semblante
Nas posicoes de certos fructos. E entre
As hortalicas, tumido, fragrante,
Como d'alguem que tudo aquilo jante,
Surge um melao, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, emfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vivida, escarlate,
Bons coracoes pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O sol dourava o ceo. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortela que cheira,
Voltando-se, gritou-me prazenteira:
"Nao passa mais ninguem!... Se me ajudasse?!..."

Eu acerquei-me d'ella, sem desprezo;
E, pelas duas azas a quebrar,
Nos levantamos todo aquelle peso
Que ao chao de pedra resistia preso,
Com um enorme esforco muscular.

"Muito obrigada! Deus lhe de saude!"
E recebi, naquella despedida,
As forcas, a alegria, a plenitude,
Que brotam d'um excesso de virtude
Ou d'uma digestao desconhecida.

E em quanto sigo para o lado opposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas macas do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira
D'uma janella azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrellas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas e incensal-o.

Chegam do gigo emanacoes sadias,
Oico um canario--que infantil chilrada!--
Lidam menages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja distillada.

E pittoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
D'uma desgraca alegre que me incita,
Ella apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.

E como as grossas pernas d'um gigante,
Sem tronco, mas athleticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rustica, abundante,
Duas frugaes aboboras carneiras.



CRYSTALISACOES

A Bettencourt Rodrigues

Faz frio. Mas, depois d'uns dias de aguaceiros,
  Vibra uma immensa claridade crua.
  De cocaras, em linha os calceteiros,
  Com lentidao, terrosos e grosseiros,
  Calcam de lado a lado a longa rua.

Como as elevacoes seccaram do relento,
  E o descoberto sol abafa e cria!
  A frialdade exige o movimento;
  E as pocas d'agua, como em chao vidrento,
  Reflectem a molhada casaria.

Em pe e perna, dando aos rins que a marcha agita,
  Disseminadas, gritam as peixeiras;
  Luzem, aquecem na manha bonita,
  Uns barracoes de gente pobresita.
  E uns quintalorios velhos com parreiras.

Nao se ouvem aves; nem o choro d'uma nora!
  Tomam por outra parte os viandantes;
  E o ferro e a pedra--que uniao sonora!--
  Retinem alto pelo espaco fora,
  Com choques rijos, asperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagoes, morosos, duros, bacos,
  Cuja columna nunca se endireita,
  Partem penedos; cruzam-se estilhacos.
  Pesam enormemente os grossos macos,
  Com que outros batem a calcada feita.

A sua barba agreste! A la dos seus barretes!
  Que espessos forros! N'uma das regueiras
  Acamam-se as japonas, os colletes:
  E elles descalcam com os picaretes,
  Que ferem lume sobre pederneiras.

E n'esse rude mez, que nao consente as flores,
  Fundeam, como a esquadra em fria paz,
  As arvores despidas. Sobrias cores!
  Mastros, enxarcias, vergas! Valladores
  Atiram terra com as largas pas.

Eu julgo-me no Norte, ao frio--o grande agente!--
  Carros de mao, que chiam carregados,
  Conduzem saibro, vagarosamente;
  Ve se a cidade, mercantil, contente:
  Madeiras, aguas, multidoes, telhados!

Negrejam os quintaes, enxuga e alvenaria;
  Em arco, sem as nuvens fluctuantes,
  O ceu renova a tinta corredia;
  E os charcos brilham tanto, que eu diria
  Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem muito embora, os fracos, os tolhidos,
  Eu tudo encontro alegremente exacto.
  Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
  E tangem-me, excitados, sacudidos,
  O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Pede-me o corpo inteiro esforcos na friagem
  De tao lavada e egual temperatura!
  Os ares, o caminho, a luz reagem;
  Cheira-me a fogo, a silex, a ferragem;
  Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal encarado e negro, um para emquanto eu passo;
  Dois assobiam, altas as marretas
  Possantes, grossas, temperadas d'aco;
  E um gordo, o mestre, com um ar de ralaco
  E manso, tira o nivel das valletas.

Homens de carga! Assim as bestas vao curvadas!
  Que vida tao custosa! Que diabo!
  E os cavadores pousam as enxadas,
  E cospem nas callosas maos gretadas,
  Para que nao lhes escorregue o cabo.

Povo! No panno cru rasgado das camizas
  Uma bandeira penso que transluz!
  Com ella soffres, bebes, agonisas:
  Listroes de vinho lancam-lhe divisas,
  E os suspensorios tracam-lhe uma cruz!

D'escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
  Surge um perfil direito que se aguca;
  E ar matinal de quem sahiu da toca,
  Uma figura fina, desemboca,
  Toda abafada n'um casaco a russa.

D'onde ella vem! A actriz que tanto comprimento
  E a quem, a noite na plateia, attraio
  Os olhos lizos como polimento!
  Com seu rostinho estreito, friorento,
  Caminha agora para o seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
  Como lajoes. Os bons trabalhadores!
  Os filhos das lezirias, dos montados;
  Os das planicies, altos, aprumados;
  Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feicoes, o queixo hostil, distincto,
  Furtiva a tiritar em suas pelles,
  Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
  N'este dezembro energico, succinto,
  E n'estes sitios suburbanos, reles!

Como animaes communs, que uma picada esquente,
  Elles, bovinos, masculos, ossudos,
  Encaram-n'a sanguinea, brutamente:
  E ella vacilla, hesita impaciente
  Sobre as botinhas de tacoes agudos.

Porem, desempenhando o seu papel na peca,
  Sem que inda o publico a passagem abra,
  O demonico arrisca-se, atravessa
  Covas, entulhos, lamacaes, depressa,
  Com seus pesinhos rapidos, de cabra!



NOITES GELIDAS

MERINA

Rosto comprido, airosa, angelical, macia,
Por vezes, a allema que eu sigo e que me agrada,
Mais alva que o luar de inverno que me esfria,
Nas ruas a que o gaz da noites de ballada;
Sob os abafos bons que o Norte escolheria,
Com seu passinho curto e em suas las forrada,
Recorda-me a elegancia, a graca, a galhardia
De uma ovelhinha branca, ingenua e delicada.


SARDENTA

Tu, n'esse corpo completo,
O lactea virgem doirada,
Tens o lymphatico aspecto
D'uma camelia melada.


FLORES VELHAS

Fui hontem visitar o jardimzinho agreste,
Aonde tanta vez a luz nos beijou,
E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste,
Soberba como um sol, serena como um voo.

Em tudo scintillava o limpido poema
Com osculos rimado as luzes dos planetas;
A abelha inda zumbia em torno da alfazema;
E ondulava o matiz das leves borboletas.

Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem,
A imagem que inspirava os castos madrugaes;
E as viracoes, o rio, os astros, a pasizagem,
Traziam-me a memoria idyllios immortaes.

Diziam-me que tu, no florido passado,
Detinhas sobre mim, ao pe d'aquellas rosas,
Aquelle teu olhar moroso e delicado,
Que fala de languor e d'emocoes mimosas;

E, o pallida Clarisse, o alma ardente e pura,
Que nao me desgostou nem uma vez sequer,
Eu nao sabia haurir do calix da ventura
O nectar que nos vem dos mimos da mulher.

Falou-me tudo, tudo, em tons commovedores,
Do nosso amor, que uniu as almas de dois entes;
As falas quasi irmas do vento com as flores
E a molle exhalacao das varzeas rescendentes.

Inda pensei ouvir aquellas coisas mansas
No ninho de affeicoes creado para ti,
Por entre o riso claro, e as vozes das creancas,
E as nuvens que esbocei, e os sonhos que nutri.

Lembrei-me muito, muito, o symbolo das santas,
Do tempo em que eu soltava as notas inspiradas,
E sob aquelle ceo e sobre aquellas plantas
Bebemos o elixir das tardes perfumadas.

E nosso bom romance escripto n'um desterro,
Com beijos sem ruido em noites sem luar,
Fizeram-m'o reler, mais tristes que um enterro,
Os goivos, a baunilha e as rosas de toucar.

Mas tu agora nunca, ah! nunca mais te sentas
Nos bancos de tijolo em musgo atapetados,
E eu nao beijarei, as horas somnolentas,
Os dedos de marfim, polidos e delgados...

Eu, por nao ter sabido amar os movimentos
Da estrophe mais ideal das harmonias mudas,
Eu sinto as decepcoes e os grandes desalentos
E tenho um riso mau como o sorrir de Judas.

E tudo emfim passou, passou como uma penna,
Que o mar leva no dorso exposto aos vendavaes,
E aquella doce vida, aquella vida amena,
Ah! nunca mais vira, meu lyrio, nunca mais!

O minha boa amiga, o minha meiga amante!
Quando hontem eu pisei, bem magro e bem curvado,
A areia em que rangia a saia rocagante,
Que foi na minha vida o ceo aurirosado,

Eu tinha tao impresso o cunho da saudade,
Que as ondas que formei das suas illusoes
Fizeram-me enganar na minha soledade
E as azas ir abrindo as minhas impressoes.

Soltei com devocao lembrancas inda escravas,
No espaco construi phantasticos castellos,
No tanque debrucei-me em que te debrucavas,
E onde o luar parava os raios amarellos.

Cuidei ate sentir, mais doce que uma prece,
Suster a minha fe, n'um veo consolador,
O teu divino olhar que as pedras amollece,
E ha muito que me prendeu nos carceres do amor.

Os teus pequenos pes, aquelles pes suaves,
Julguei-os esconder por entre as minhas maos,
E imaginei ouvir ao conversar das aves
As celicas cancoes dos anjos aos teus irmaos.



NOITE FECHADA

(L.)

Lembras-te tu do sabbado passado,
Do passeio que demos, devagar,
Entre um saudoso gaz amarellado
E as caricias leitosas do luar?

Bem me lembro das altas ruasinhas,
Que ambos nos percorremos de maos dadas:
As janellas palravam as visinhas;
Tinham lividas luzes as fachadas.

Nao me esqueco das cousas que disseste,
Ante um pesado templo com recortes;
E os cemiterios ricos, e o cypreste
Que vive de gorduras e de mortes!

Nos sairamos proximo ao sol-posto,
Mas seguiamos cheios de demoras;
Nao me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino rachado que deu horas.

Tenho ainda gravado no sentido,
Porque tu caminhavas com prazer,
Cara rapada, gordo e presumido,
O padre que parou para te ver.

Como uma mitra a cupula da egreja
Cobria parte do ventoso largo;
E essa bocca vicosa de cereja,
Torcia risos com sabor amargo.

A lua dava tremulas brancuras,
Eu ia cada vez mais magoado;
Vi um jardim com arvores escuras,
Como uma jaula todo gradeado!

E para te seguir entrei comtigo
N'um pateo velho que era d'um canteiro,
E onde, talvez, se faca inda o jazigo
Em que eu irei apodrecer primeiro!

Eu sinto ainda a flor da tua pelle,
Tua luva, teu veu, o que tu es!
Nao sei que tentacao e que te impelle
Os pequeninos e cancados pes.

Sei que em tudo attentavas, tudo vias!
Eu por mim tinha pena dos marcanos,
Como ratos, nas gordas mercearias,
Encafunados por immensos annos!

Tu sorriras de tudo: Os carvoeiros,
Que apparecem ao fundo d'umas minas,
E a crua luz os pallidos barbeiros
Com oleos e maneiras femininas!

Fins de semana! Que miseria em bando!
O povo folga, estupido e grisalho!
E os artistas d'officio iam passando,
Com as ferias, ralados do trabalho.

O quadro anterior, d'um que a candea,
Ensina a filha a ler, metteu-me do!
Gosto mais do plebeu que cambalea,
Do bebado feliz que falla so!

De subito, na volta de uma esquina,
Sob um bico de gaz que abria em leque,
Vimos um militar, de barretina
E galoes marciaes de pechisbeque,

E em quanto elle fallava ao seu namoro,
Que morava n'um predio de azulejo,
Nos nossos labios retinio sonoro
Um vigoroso e formidavel beijo!

E assim ao meu capricho abandonada,
Erramos por travessas, por viellas,
E passamos por pe d'uma tapada
E um palacio real com sentinellas.

E eu que busco a moderna e fina arte,
Sobre a umbrosa calcada sepulchral,
Tive a rude intencao de violentar-te
Imbecilmente como um animal!

Mas ao rumor dos ramos e d'aragem,
Como longiquos bosques muito ermos,
Tu querias no meio da folhagem
Um ninho enorme para nos vivermos.

E ao passo que eu te ouvia abstractamente,
O grande pomba tepida que arrulha,
Vinham batendo o macadam fremente,
As patadas sonoras da patrulha,

E atravez a immortal cidadesinha,
Nos fomos ter as portas, as barreiras,
Em que uma negra multidao se apinha
De teceloes, de fumos, de caldeiras.

Mas a noite dormente e esbranquicada
Era uma esteira lucida d'amor;
O jovial senhora perfumada,
O terrivel creanca! Que esplendor!

E ali comecaria o meu desterro!...
Lodoso o rio, e glacial, corria;
Sentamo-nos, os dois, n'um novo aterro
Na muralha dos caes de cantaria.

Nunca mais amarei, ja que nao me amas,
E e preciso, decerto, que me deixes!
Toda a mare luzida como escamas,
Como alguidar de prateados peixes.

E como e necessario que eu me afoite
A perder-me de ti por quem existo,
Eu fui passar ao campo aquella noite
E andei leguas a pe, pensando n'isto.

E tu que nao seras somente minha,
As caricias leitosas do luar,
Recolheste-te, pallida e sosinha
A gaiola do teu terceiro andar!



MANHANS BRUMOSAS

Aquella, cujo amor me causa alguma pena,
Poe o chapeo ao lado, abre o cabello a banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhan, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, bucolica, morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.

Que linguas fala? A ouvir-lhe as inflexoes inglezas,
--Na Nevoa azul, a caca, as pescas, os rebanhos!--
Sigo-lhe os altos pes por estas asperezas;
E o meu desejo nada em epoca de banhos,
E, ave de arribacao, elle enche de surprezas
Seus olhos de perdiz, redondos e castanhos.

As irlandezas teem soberbos desmazelos!
Ella descobre assim, com lentidoes ufanas,
Alta, escorrida, abstracta, os grossos tornozelos;
E como aquellas sao maritimas, serranas,
Suggere-me o naufragio, as musicas, os gelos
E as redes, a manteiga, os queijos, as choupanas.

Parece um "rural boy"! Sem brincos nas orelhas,
Traz um vestido claro a comprimir-lhe os flancos,
Botoes a tiracollo e applicacoes vermelhas;
E a roda, n'um paiz de prados e barrancos,
Se as minhas maguas vao, mansissimas ovelhas,
Correm os seus desdens, como vitellos brancos.

E aquella, cujo amor me causa alguma pena,
Poe o chapeo ao lado, abre o cabello a banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhan, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, catholica, morena,
Uma pastora de audaz da religiosa Irlanda.



FRIGIDA

I

Balzac e meu rival, minha senhora ingleza!
Eu quero-a porque odeio as carnacoes redondas!
Mas elle eternisou-lhe a singular belleza
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas.

II

Admiro-a. A sua longa e placida estatura
Expoe a magestade austera dos invernos.
Nao cora no seu todo a timida candura;
Dansam a paz dos ceos e o assombro dos infernos.

III

Eu vejo-a caminhar, fleugmatica, irritante,
N'uma das maos franzindo um lenco de cambraia!...
Ninguem me prende assim, funebre, extravagante,
Quando arregaca e ondula a preguicosa saia!

IV

Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite,
Mas nunca a fitarei d'uma maneira franca;
Traz o esplendor do Dia e as pallidez da Noite,
E, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca!

V

Podesse-me eu prostrar, n'um meditado impulso,
O gelida mulher bizarramente estranha,
E tremulo depor os labios no seu pulso,
Entre a macia luva e o punho de bretanha!...

VI

Scintilla no seu rosto a lucidez das joias.
Ao encarar comsigo a phantasia pasma;
Pausadamente lembra o silvo das giboias
E a marcha demorada e muda d'um phantasma.

VII

Metallica visao que Charles Baudelaire
Sonhou e presentiu nos seus delirios mornos,
Permitta que eu lhe adule a distinccao que fere,
As curvas de magreza e o lustre dos adornos!

VIII

Deslise como um astro, uma astro que declina;
Tao descancada e firme e que me desvaria,
E tem a lentidao d'uma corveta fina
Que nobremente va n'um mar de calmaria.

IX

Nao me imagine um doido. Eu vivo como um monge,
No bosque das ficcoes, o grande flor do Norte!
E, ao, perseguil-a, penso acompanhar de longe
O socegado espectro angelico da Morte!

X

O seu vagar occulta uma elasticidade
Que deve dar um gosto amargo e deleitoso,
E a sua glacial impassibilidade
Exalta o meu desejo e irrita o meu nervoso.

XI

Porem, nao arderei aos seus contactos frios,
E nao me enroscara nos serpentinos bracos:
Receio supportar febroes e calefrios;
Adoro no seu corpo os movimentos lassos.

XII

E se uma vez me abrisse o collo transparente,
E me osculasse, emfim, flexivel e submisso,
Eu julgaria ouvir alguem, agudamente,
Nas trevas, a cortar pedacos de cortica!



DE VERAO

A Eduardo Coelho

I

No campo; eu acho n'elle a musa que me anima:
   A claridade, a robustez, a accao.
   Esta manha, sai com minha prima,
   Em que eu noto a mais sincera estima
   E a mais completa e seria educacao.

II

Creanca encantadora! Eu mal esboco o quadro
   Da lyrica excursao, d'intimidade
   Nao pinto a velha ermida com seu adro;
   Sei so desenho de compasso e esquadro,
   Respiro industria, paz, salubridade.

III

Andam cantando aos bois; vamos cortando as leiras;
   E tu dizias: "Fumas? E as fagulhas?
   Apaga o teu cachimbo junto as eiras;
   Colhe-me uns brincos rubros nas ginjeiras!
   Quando me alegra a calma das debulhas!"

IV

E perguntavas sobre os ultimos inventos
   Agricolas. Que aldeias tao lavadas!
   Bons ares! Boa luz! Bons alimentos!
   Olha: Os saloios vivos, corpulentos,
   Como nos fazem grandes barretadas!

V

Voltemos. Na ribeira abundam as ramagens
   Dos olivaes escuros. Onde iras?
   Regressam os rebanhos das pastagens;
   Ondeiam milhos, nuvens e miragens,
   E, silencioso, eu fico para traz.

VI

N'uma collina azul brilha um logar caiado.
   Bello! E arrimada ao cabo da sombrinha,
   Com teu chapeo de palha, desabado,
   Tu continuas na azinhaga; ao lado
   Verdeja, vicejante, a nossa vinha.

VII

N'isto, parando, como alguem que se analysa,
   Sem desprender do chao teus olhos castos,
   Tu comecaste, harmonica, indecisa,
   A arregacar a chita, alegre e lisa
   Da tua cauda um poucochinho a rastos.

VIII

Espreitam-te, por cima, as frestas dos celleiros;
   O sol abrasa as terras ja ceifadas,
   E alvejam-te, na sombra dos pinheiros,
   Sobre os teus pes decentes, verdadeiros,
   As saias curtas, frescas, engommadas.

IX

E, como quem saltasse, extravagantemente,
   Um rego d'agua sem se enxovalhar,
   Tu, a austera, a gentil, a intelligente,
   Depois de bem composta, deste a frente
   Uma pernada comica, vulgar!

X

Exotica! E cheguei-me ao pe de ti. Que vejo!
   No atalho enxuto, e branco das espigas
   Caidas das carradas no salmejo,
   Esguio e a negrejar em um cortejo,
   Destaca-se um carreiro de formigas.

XI

Ellas, em sociedade, espertas, diligentes,
   Na natureza tremula de sede,
   Arrastam bichos, uvas e sementes;
   E atulha, por instincto, previdentes,
   Seus antros quasi occultos na parede.

XII

E eu desatei a rir como qualquer macaco!
   "Tu nao as esmagares contra o solo!"
   E ria-me, eu ocioso, inutil, fraco,
   Eu de jasmim na casa do casaco
   E d'oculo deitado a tiracolo!

XIII

"As ladras da colheita! Eu se trouxesse agora
   Um sublimado corrosivo, uns pos
   De solimao, eu, sem maior demora,
   Envenenal-as-hia! Tu, por ora,
   Preferes o romantico ao feroz.

XIV

Que compaixao! Julgava ate que matarias
   Esses insectos importunos! Basta.
   Merecem-te espantosas sympathias?
   Eu felicito suas senhorias,
   Que honraste com um pulo de gymnasta!"

XV

E emfim calei-me. Os teus cabellos muito loiros
   Luziam, com docura, honestamente;
   De longe o trigo em monte, e os calcadoiros,
   Lembravam-me fusoes d'immensos oiros,
   E o mar um prado verde e florescente.

XVI

Vibravam, na campina, as chocas da manada;
   Vinham uns carros a gemer no outeiro,
   E finalmente, energica, zangada,
   Tu inda assim bastante envergonhada,
   Volveste-me, apontando o formigueiro:

XVII

"Nao me incommode, nao, com ditos detestaveis!
   Nao seja simplesmente um zombador!
   Estas mineiras negras, incancaveis,
   Sao mais economistas, mais notaveis,
   E mais trabalhoras que o senhor."



O SENTIMENTO D'UM OCCIDENTAL

A Guerra Junqueiro


I

AVE MARIAS

      Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Ha tal soturnidade, ha tal melancholia,
Que as sombras, o bulicio, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de soffrer.

      O ceu parece baixo e de neblina,
O gaz extravasado enjoa-me, perturba;
E os edificios, com as chamines, e a turba
Toldam-se d'uma cor monotona e londrina.

      Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando a via ferrea os que se vao. Felizes!
Occorrem-me em revista exposicoes, paizes:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

      Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificacoes somente emmadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

      Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetao ao hombro, enfarruscados, seccos;
Embrenho-me, a scismar, por boqueiroes, por beccos,
Ou erro pelos caes a que se atracam botes.

      E evoco, entao, as chronicas navaes:
Mouros, baixeis, heroes, tudo resuscitado!
Lucta Camoes no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu nao verei jamais!

      E o fim da tarde inspira-me; e incommoda!
De um couracado inglez vogam os escaleres;
E em terra n'um tinir de loucas e talheres
Flammejam, ao jantar, alguns hoteis da moda.

      N'um trem de praca arengam dois dentistas;
Um tropego arlequim braceja n'umas andas;
Os cherubins do lar fluctuam nas varandas;
As portas, em cabello, enfadam-se os logistas!

      Vasam-se os arsenaes e as officinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E n'um cardume negro, herculeas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

      Vem sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, a cabeca, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas,

      Descalcas! Nas descargas de carvao,
Desde manha a noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se n'um bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infeccao!


II

NOITE FECHADA

      Toca-se as grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estao velhinhas e creancas,
Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!

      E eu desconfio, ate, de um aneurisma
Tao morbido me sinto, ao accender das luzes;
A vista das prisoes, da velha se, das cruzes,
Chora-me o coracao que se enche e que se abysma.

      A espacos, illuminam-se os andares,
E as tascas, os cafes, as tendas, os estancos
Alastram em lencol os seus reflexos brancos;
E a lua lembra o circo e os jogos malabares.

      Duas egrejas, n'um saudoso largo,
Lancam a nodoa negra e funebre do clero:
N'ellas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela Historia eu me aventuro e alargo.

      Na parte que abateu no terremoto,
Muram-se as construccoes rectas, eguaes, crescidas;
Affrontam-me, no resto, as ingremes subidas,
E os sinos d'um tanger monastico e devoto.

      Mas, n'um recinto publico e vulgar,
Com bancos de namoro e exiguas pimenteiras,
Bronzeo, monumental, de proporcoes guerreiras,
Um epico d'outr'ora ascende, n'um pilar!

      E eu sonho o Colera, imagina a Febre,
N'esta accumulacao de corpos enfezados;
Sombrios e espectraes recolhem os soldados;
Inflamma-se um palacio em face de um casebre.

      Partem patrulhas de cavallaria
Dos arcos dos quarteis que foram ja conventos;
Edade-media! A pe, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

      Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixao defunta! Aos lampeoes distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir as montras dos ourives.

      E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobresaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescocos altos
E muitas d'ellas sao comparsas ou coristas.

      E eu, de luneta de uma lente so,
Eu acho sempre assumpto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; as mesas de emigrados,
Ao riso e a crua luz joga-se o domino.


III

AO GAZ

      E saio. A noite peza, esmaga. Nos
Passeios de lagedo arrastam-se as impuras.
O molles hospitaes! Sae das embocaduras
Um sopro que arripia os hombros quasi nus.

      Cercam-me as lojas, tepidas. Eu penso
Ver cirios lateraes, ver filas de capellas,
Com santos e fieis, andores, ramos, velas,
Em uma cathedral de um comprimento immenso.

      As burguezinhas do Catholocismo
Resvalam pelo chao minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de hysterismo.

      N'um cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exhala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pao no forno.

      E eu que medito um livro que exarcebe,
Quizera que o real e a analyse m'o dessem;
Casas de confeccoes e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

      Longas descidas! Nao poder pintar
Com versos magistraes, salubres e sinceros,
A esguia diffusao dos vossos reverberos,
E a vossa pallidez romantica e lunar!

      Que grande cobra, a lubrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns chales com debuxo!
Sua excellencia attrae, magnetica, entre luxo,
Que ao longo dos balcoes de mogno se amontoa.

      E aquella velha, de bandos! Por vezes,
A sua traine imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticaes, a duas tintas. Perto,
Escarvam, a victoria, os seus mecklemburguezes.

      Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentaes seccam nos mostradores;
Flocos de pos de arroz pairam suffocadores,
E em nuvems de setins requebram-se os caixeiros,

      Mas tudo canca! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrellas, pouco a pouco;
Da solidao regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoleos as armacoes fulgentes.

      "Do da miseria!... Compaixao de mim!..."
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homemzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de latim!


IV

HORAS MORTAS

      O tecto fundo de oxygenio, d'ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vem lagrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a chimera azul de transmigrar.

      Por baixo, que portoes! Que arruamentos!
Um parafuso cae nas lages, as escuras:
Collocam-se taipaes, rangem as fechaduras,
E os olhos d'um caleche espantam-me, sangrentos.

      E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silencio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longiqua flauta.

      Se eu nao morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeicao das cousas!
Esqueco-me a prever castissimas esposas,
Que aninhem em mansoes de vidro transparente!

      O nossos filhos! Que de sonhos ageis,
Pousando, vos trarao a nitidez as vidas!
Eu quero as vossas maes e irmas estremecidas,
N'umas habitacoes translucidas e frageis.

      Ah! Como a raca ruiva do porvir,
E as frotas dos avos, e os nomadas ardentes,
Nos vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidoes aquaticas seguir!

      Mas se vivemos, os emparedados,
Sem arvores, no valle escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de soccorro ouvir estrangulados.

      E n'estes nebulosos corredores
Nauseam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braco dado, uns tristes bebedores.

      Eu nao receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distancia, os dubios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, osseos, febris, errantes,
Amarelladamente, os caes parecem lobos.

      E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as immoraes, nos seus roupoes ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

      E, enorme, n'esta massa irregular
De predios sepulchraes, com dimensoes de montes,
A Dor humana busca os amplos horisontes,
E tem mares, de fel, como um sinistro mar!



DE TARDE

N'aquelle "pic-nic" de burguezas,
Houve uma cousa simplesmente bella,
E que, sem ter historia nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarella.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grao de bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima d'uns penhascos,
Nos acampamos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melao, damascos,
E pao de lo molhado em malvasia.

Mas, todo purpuro a sahir da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!



EM PETIZ


I

DE TARDE

Mais morta do que viva, a minha companheira
Nem forca teve em si para soltar um grito;
E eu, n'esse tempo, um destro e bravo rapazito,
Como um homemzarrao servi-lhe de barreira!

Em meio de arvoredo, azenhas e ruinas,
Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;
E, tetas a abanar, as maes de largas ancas,
Desciam mais atraz, malhadas e turinas.

Do seio do logar--casitas com postigos--
Vem-nos o leite. Mas baptisam-n'o primeiro.
Leva-o, de madrugada, em bilhas, o leiteiro,
Cujo pregao vos tira ao vosso somno, amigos!

Nos davamos, os dois, um giro pelo valle:
Varzeas, povoacoes, pegos, silencios vastos!
E os fartos animaes, ao recolher dos pastos,
Rocavam pelo teu "costume de percale".

Ja nao receias tu essa vaquita preta,
Que eu segurei, prendi por um chavelhoe? Juro
Que estavas a tremer, cosida com o muro,
Hombros em pe, medrosa, e fina, de luneta!


II

OS IRMAOSINHOS

Pois eu, que no deserto dos caminhos,
Por ti me expunha immenso, contra as vaccas;
Eu, que apartava as mansas das velhacas,
Fugia com terror dos pobresinhos!

Vejo-os no pateo, ainda! Ainda os ouco!
Os velhos, que nos rezam padre-nossos;
Os mandrioes que rosnam, altos, grossos;
E os cegos que se apoiam sobre o moco.

Ah! Os ceguinhos com a cor dos barros,
Ou que a poeira no suor mascarra,
Chegam das feiras a tocar guitarra,
Rolam os olhos como dois escarros!

E os pobres mettem medo! Os de marmita,
Para forrar, por anno, alguns patacos,
Entrapam-se nas mantas com buracos,
Choramingando, a voz rachada, afflicta.

Outros pedincham pelas cinco chagas;
E no poial, tirando as ligaduras,
Mostram as pernas putridas, maduras,
Com que se arrastam pelas azinhagas!

Querem viver! E picam-se nos cardos;
Correm as villas; sobem os outeiros;
E as horas de calor, nos esterqueiros,
De roda d'elles zumbem os moscardos.

Aos sabbados, os monstros, que eu lamento,
Batiam ao portao com seus cajados;
E um aleijado com os pes quadrados,
Pedia-nos de cima de um jumento.

O resmungao! Que barbas! Que saccolas!
Cheirava a migas, a bafio, a arrotos;
Dormia as noutes por telheiros rotos,
E sustentava o burro a pao d'esmolas.

       *       *       *       *       *

O minha loura e doce como um bolo!
Affavel hospeda na nossa casa,
Logo que a torrida cidade abraza,
Como um enorme forno de tijolo!

Tu visitavas, esmoler, garrida,
Umas creancas n'um casal queimado;
E eu, pela estrada, espicacava o gado,
N'uma attitude esperta e decidida.

Por lobishomens, por papoes, por bruxas,
Nunca soffremos o menor receio.
Temieis vos, porem, o meu aceio,
Mendigasitas sordidas, gorduchas!

Vicios, sezoes, epidemias, furtos,
De certo, fermentavam entre lixos;
Que podridao cobria aquelles bichos!
E que luar nos teus fatinhos curtos!

       *       *       *       *       *

Sei de uma pobre, apenas, sem desleixos,
Ruca, descalca, a trote nos atalhos,
E que lavava o corpo e os seus retalhos
No rio, ao pe dos choupos e dos freixos.

E a douda a quem chamavam a "Ratada"
E que fallava so! Que antipathia!
E se com ella a malta contendia,
Quanta indecencia! Quanta palavrada!

Uns operarios, n'estes descampados,
Tambem surdiam, de chapeu de coco,
Dizendo-se, de olhar rebelde e louco,
Artistas despedidos, desgracados.

Muitos! E um bebedo--o Camoes--que fora
Rico, e morreu a mendigar, zarolho,
Com uma pala verde sobre um olho!
Tivera ovelhas, bois, mulher, lavoura.

E o resto? Bandos de selvagensinhos:
Um nu que se gabava de maroto;
Um, que cortada a mao, cocava o coto,
E os bons que nos tratavam por padrinhos.

Pediam fatos, botas, cobertores!
Outro jogava bem o pau, e vinha
Chorar, humilde, junto da coxinha!
"Cinco reisinhos!... Nobres bemfeitores!...

E quando alguns ficavam nos palheiros,
E de manha catavam os piolhos:
Emquanto o sol batia nos restolhos
E os nossos caes ladravam, resingueiros!

Hoje entristeco. Lembro-me dos coxos,
Dos surdos, dos manhosos, dos manetas.
Sulcavam as calcadas, de muletas;
Cantavam, no pomar, os pintarroxos!


III

HISTORIAS

Scismatico, doente, azedo, apoquentado,
Eu agourava o crime, as facas, a enxovia,
Assim que um besuntao dos taes se apercebia
Da minha blusa azul e branca, de riscado.

Minaveis, ao serao, a cabecita loira,
Com contos de provincia, ingenuas creaditas:
Quadrilhas assaltando as quintas mais bonitas,
E pondo a gente fina, em postas, de salmoira!

Na noite velha, a mim, como ticoes ardendo,
Fitavam-me os olhoes pesados das ciganas;
Deitavam-n'os o fogo aos predios e arribanas;
Cercava-me um incendio ensanguentado, horrendo.

E eu que era um cavallao, eu que fazia pinos,
Eu que jogava a pedra, eu que corria tanto;
Sonhava que os ladroes--homens de quem m'espanto
Roubavam para azeite a carne dos meninos!

E protegia-te eu, n'aquelle outomno brando,
Mal tu sentias, entre as serras esmoitadas,
Gritos de maioraes, mugidos de boiadas,
Branca de susto, meiga e miope, estacando!



NOS

A A. de S. V.


I

Foi quando em dois veroes, seguidamente, a Febre
E o Cholera tambem andaram na cidade,
Que esta populacao, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.

Ora, meu pae, depois das nossas vidas salvas,
(Ate entao nos so tiveramos sarampo),
Tanto nos viu crescer entre uns montoes de malvas
Que elle ganhou por isso um grande amor ao campo.

Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso predio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nos salvamo-nos na fuga.

Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um panico! Nem um navio entrava a barra,
A alfandega parou, nenhuma loja abria,
E os turbolentos caes cessaram a algazarra.

Pela manha, em vez dos trens dos baptisados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessao dos armazens fechados!
Como um domingo inglez na "city", que desterro!

Sem canalisacao, em muitos burgos ermos,
Seccavam dejeccoes cobertas de mosqueiros.
E os medicos, ao pe dos padres e coveiros,
Os ultimos fieis, tremiam dos enfermos!

Uma illuminacao a azeite de purgueira,
De noite amarellava os predios macillentos.
Barricas d'alcatrao ardiam; de maneira
Que tinham tons d'inferno outros arruamentos.

Porem, la fora, a solta, exageradamente
Emquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetacao, plethorica, potente,
Ganhava immenso com a enorme mortandade!

N'um impeto de seiva os arvoredos fartos,
N'uma opulenta furia as novidades todas,
Como uma universal celebracao de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.

Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste d'ouvir fallar em orphaos e em viuvas,
E em permanencia olhando o horizonte em brasa,
Nao quiz voltar senao depois das grandes chuvas.

Elle d'um lado, via os filhos achacados,
Um livido flagello e uma molestia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezirias, prados,
E um salutar refugio e um lucro na vivenda!

E o campo, desde entao, segundo o que me lembro,
E todo o meu amor de todos estes annos!
Nos vamos para la; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro!

II

Que de fructa! E que fresca e tempora,
Nas duas boas quintas bem muradas,
Em que o sol, nos talhoes e nas latadas,
Bate de chapa, logo de manha!

O laranjal de folhas negrejantes,
(Porque os terrenos sao resvaladicos)
Desce em socalcos todos os macissos,
Como uma escadaria de gigantes.

Das courellas, que criam cereaes,
De que os donos--ainda!--pagam foros.
Dividem-n'o fechados pitosporos,
Abrigos de raizes verticaes.

Ao meio, a casaria branca assenta
A beira da calcada, que divide
Os escuros pomares de pevide,
Da vinha, n'uma encosta soalhenta!

Entretanto, nao ha maior prazer
Do que, na placidez das duas horas,
Ouvir e ver, entre o chiar das noras,
No largo tanque as bicas a correr!

Muito ao fundo, entre olmeiros seculares,
Secca o rio! Em trez mezes d'estiagem,
O seu leito e um atalho de passagem,
Pedregosissimo, entre dois logares.

Como lhe luzem seixos e burgaus
Rolicos! Marinham nas ladeiras
Os renques africanos das piteiras,
Que como aloes espigam altos paus!

Montanhas inda mais longiquamente,
Com restevas, e combros como bocas,
Lembram cabecas estupendas, grossas,
De cabello grisalho, muito rente.

E, a contrastar, nos valles, em geral,
Como em vidraca d'uma enorme estufa,
Tudo se attrae, se impoe, alarga e entufa,
D'uma vitalidade equatorial!

Que de frugalidades nos criamos!
Que torrao espontaneo que nos somos!
Pela outomnal maturacao dos pomos,
Com a carga, no chao pousam os ramos.

E assim postas, nos barros e areiaes,
As maceiras vergadas fortemente,
Parecem, d'uma fauna surprehendente,
Os polypos enormes, diluviaes.

Comtudo, nos nao temos na fazenda
Nem uma planta so de mero ornato!
Cada pe mostra-se util, e sensato,
Por mais finos aromas que rescenda!

Finalmente, na fertil depressao,
Nada se ve que a nossa mao nao regre:
A florescencias d'um matiz alegre
Mostra um sinal--a fructificacao!

       *       *       *       *       *

Ora, ha dez annos, n'este chao de lava
E argila e areia e alluvioes dispersas,
Entre especies botanicas diversas,
Forte, a nossa familia radiava!

Unicamente, a minha doce irma,
Como uma tenue e immaculada rosa,
Dava a nota galante e melindrosa
Na trabalheira rustica, aldea.

E foi n'um anno prodigo, excellente,
Cuja amargura nada sei que adoce,
Que nos perdemos essa flor precoce,
Que cresceu e morreu rapidamente!

Ai d'aquelles que nascem n'este cahos,
E, sendo fracos, sejam generosos!
As doencas assaltam os bondosos
E--custa a crer--deixam viver os maus!

       *       *       *       *       *

Fecho os olhos cancados, e descrevo
Das telas da memoria retocadas,
Biscates, hortas, batataes, latadas,
No paiz montanhoso, com relevo!

Ah! Que aspectos benignos e ruraes
N'esta localidade tudo tinha,
Ao ires, com o banco de palhinha,
Para a sombra que faz nos parreiraes!

Ah! Quando a calma, a sesta, nem consente
Que uma folha se mova ou se desmanche,
Tu, refeita e feliz com o teu "lunch",
Nos ajudavas, voluntariamente!...

Era admiravel--n'este grau do Sul!--
Entre a rama avistar o teu rosto alvo,
Ver-te escolhendo a uva diagalvo,
Que eu embarcava para Liverpool.

A exportacao de frutas era um jogo:
Dependiam da sorte do mercado
O boal, que e de perolas formado,
E o ferral, que e ardente e cor de fogo!

Em agosto, ao calor canicular,
Os passaros e enxames tudo infestam;
Tu cortavas os bagos que nao prestam
Com a tua thesoura de bordar.

Douradas, pequeninas, as abelhas,
E negros, volumosos, os besoiros,
Circumdavam, com impetos de toiros,
As tuas candidissimas orelhas.

Se uma vespa lancava o seu ferrao
Na tua cutis--petala de leite!--
Nos collocavamos dez reis e azeite
Sobre a galante, a rosea inflammacao!

E se um de nos, ja farto, arrenegado,
Com o chapeo cacava a bicharia,
Cada zangao voando, a luz do dia,
Lembrava o teu dedal arremessado.

       *       *       *       *       *

Que d'encantos! Na forca do calor
Desabrochavas no padrao da bata,
E, surgindo da gola e da gravata,
Teu pescoco era o caule d'uma flor!

Mas que cegueira a minha! Do teu porte
A fina curva, a indefinida linha,
Com bondades d'herbivora mansinha,
Eram prenuncios de fraqueza e morte!

A procura da libra e do "schilling",
Eu andava abstracto e sem que visse
Que o teu alvor romantico de "miss"
Te obrigava a morrer antes de mim!

E antes tu, ser lindissimo, nas faces
Tivesses "panno" como as camponezas;
E sem brancuras, sem delicadezas,
Vigorosa e plebeia, inda durasses!

Uns modos de carnivora feroz
Podias ter em vez de inoffensivos;
Tinhas caninos, tinhas incisivos,
E podias ser rude como nos!

Pois n'este sitio, que era de sequeiro,
Todo o genero ardente resistia,
E, a larguissima luz do Meio-dia,
Tomava um tom opalico e trigueiro!

       *       *       *       *       *

Sim! Europa do Norte, o que suppoes
Dos vergeis que abastecem teus banquetes,
Quando as dockas, com fructas, os paquetes
Chegam antes das tuas estacoes?!

Oh! As ricas "primeurs" da nossa terra
E as tuas frutas acidas, tardias,
No azedo amoniacal das queijarias
Dos fleugmaticos "farmers" d'Inglaterra!

O cidades fabris, industriaes,
De nevoeiros, poeiradas de hulha,
Que pensaes do paiz que vos atulha
Com a fructa que sae dos seus quintaes?

Todos os annos, que frescor se exhala!
Abundancias felizes que eu recordo!
Carradas brutas que iam para bordo!
Vapores por aqui fazendo escala!

Uma alta parreira muscatel
Por doce nao servia para embarque:
Palacios que rodeiam Hyde-Park,
Nao conheceis esse divino mel!

Pois a Coroa, o Banco, o Almirantado,
Nao as tem nas florestas em que ha corcas,
Nem em vos que dobraes as vossas forcas,
Pradarias d'um verde illimitado!

Anglos-Saxonios, tendes que invejar!
Ricos suicidas, comparae comvosco!
Aqui tudo espontaneo, alegre, tosco,
Facilimo, evidente, salutar!

Opponde as regioes que dao os vinhos
Vossos montes d'escorias inda quentes!
E as febris officinas estridentes
As nossas tecelagens e moinhos!

E o condados mineiros! Extensoes
Carboniferas! Fundas galerias!
Fabricas a vapor! Cutelarias!
E mechanicas, tristes fiacoes!

Bem sei que preparaes correctamente
O aco e a seda, as laminas e o estofo;
Tudo o que ha de mais ductil, de mais fofo,
Tudo o que ha de mais rijo e resistente!

Mas isso tudo e falso, e machinal,
Sem vida, como um circulo ou um quadrado,
Com essa perfeicao do fabricado,
Sem o rythmo do vivo e do real!

E ca o santo sol, sobre isso tudo,
Faz conceber as verdes ribanceiras;
Lanca as rosaceas bellas e fructeiras
Nas searas de trigo palhagudo!

Uma aldeia d'aqui e mais feliz,
Londres sombria, em que scintilla a corte!...
Mesmo que tu, que vives a compor-te,
Grande seio arquejante de Paris!...

Ah! Que de gloria, que de colorido,
quando, por meu mandado e meu conselho,
Ca se empapelam "as macas d'espelho"
Que Herbert Spencer talvez tenha comido!

Para alguns sao prosaicos, sao banaes
Estes versos de fibra succolenta;
Como se a polpa que nos dessedenta
Nem ao menos valesse uns madrigaes!

Pois o que a bocca trava com surprezas
Senao as frutas tonicas e puras!
Ah! N'um jantar de carnes e gorduras
A graca vegetal das sobremesas!...

Jack, marujo inglez, tu tens razao
Quando, ancorando em portos como os nossos,
As laranjas com cascas e carocos
Comes com bestial soffreguidao!...

       *       *       *       *       *

A impressao d'outros tempos, sempre viva,
Da estremecoes no meu passado morto,
E inda viajo, muita vez, absorto,
Pelas varzeas da minha retentiva.

Entao recordo a paz familiar,
Todo um painel pacifico d'enganos!
E a distancia fatal d'uns poucos annos
E uma lente convexa, d'augmentar.

Todos os typos mortos resuscito!
Perpetuam-se assim alguns minutos!
E eu exagero os casos diminutos
Dentro d'um veo de lagrimas bemdito.

Pinto quadros por lettras, por signaes,
Tao luminosos como os do Levante,
Nas horas em que a calma e mais queimante,
Na quadra em que o verao aperta mais.

Como destacam, vivas, certas cores,
Na vida externa cheia d'alegrias!
Horas, vozes, locaes, physionomias,
As ferramentas, os trabalhadores!

Aspiro um cheiro a cosedura, e a lar
E a rama do pinheiro! Eu adivinho
O resinoso, o tao agreste pinho
Serrado nos pinhaes da beira mar.

Vinha cortada, aos feixes, a madeira,
Cheia de nos, d'imperfeicoes, de rachas;
Depois armavam-se, n'um prompto as caixas
Sob uma calma espessa e calaceira!

Feias e fortes! Punham-lhes papel,
A forral-as. E em grossa serradura
Acamava-se a uva prematura
Que nao deve servir para tonel!

Cingiam-n'as com arcos de castanho
Nas ribeiras cortados, nos riachos;
E eram d'assucar e calor os cachos,
Criados pelo esterco e pelo amanho!

O pobre estrume, como tu compoes
Estes pampanos doces como afagos!
"Dedos de dama": transparentes bagos!
"Tetas de cabra": lacteas carnacoes!

E nao eram caixitas bem dispostas
Como as passas de Malaga e Alicante;
Com sua forma estavel, ignorante,
Estas pesavam, brutalmente, as costas!

Nos vinhatorios via fulgurar,
Com tanta cal que torna as vistas cegas,
Os parallelogramos das adegas,
Que tem la dentro as dornas e o lagar!

Que rudeza! Ao ar livre dos estios.
Que grande azafama! Apressadamente
Como soava um martellar frequente,
Vespera da saida dos navios!

Ah! Ninguem entender que ao meu olhar
Tudo tem certo espirito secreto!
Com folhas de saudades um objecto
Deita raizes duras de arrancar!

As navalhas de volta, por exemplo,
Cujo bico de passaro se arqueia,
Forjadas no casebre d'uma aldeia,
Sao antigas amigas que eu contemplo!

Ellas, em seu labor, em seu lidar,
Com sua ponta como a da podoas,
Serviam probas, uteis, dignas, boas,
Nunca tintas de sangue e de matar.

E as enxos de martello, que d'um lado
Cortavam mais do que as enxadas cavam,
Por outro lado, rapidas, pregavam,
D'uma pancada, o prego fasquiado!

O meu animo verga na abstraccao,
Com a espinha dorsal dobrada ao meio;
Mas se de materiaes descubro um veio
Ganho a musculatura d'um Sansao!

E assim--e mais no povo a vida e corna--
Amo os officios como o de ferreiro,
Com seu folle arquejante, seu brazeiro,
Seu malho retumbante na bigorna!

E sinto, se me ponho a recordar
Tanto utensilio, tantas perspectivas,
As tradicoes antigas, primitivas,
E a formidavel alma popular!

Oh! Que brava alegria eu tenho quando
Sou tal qual como os mais! E, sem talento,
Faco um trabalho technico, violento,
Cantando, praguejando, batalhando!

       *       *       *       *       *

Os fruteiros, tostados pelos soes,
Tinham passado, muita vez, a raia,
E, espertos, entre os mais da sua laia,
--Pobres camponios--eram uns heroes.

E por isso, com phrases imprevistas,
E colorido e estylo e valentia,
As "haciendas" que ha na "Andalucia"
Pintavam como novos paysagistas.

De como, as calmas, n'essas excursoes,
Tinham aguas salobras por refrescos;
E amarellos, enormes, gigantescos,
La batiam o queixo com sesoes!

Tinham corrido ja na adusta Hespanha,
Todo um fertil plato sem arvoredos,
Onde armavam barracas nos vinhedos,
Como tendas alegres de campanha.

Que pragas castelhanas, que alegrao,
Quanto contavam scenas de pousadas!
Adoravam as cintas encarnadas
E as cores, como os pretos do sertao!

E tinham, sem que a lei a tal obrigue,
A educacao vistosa das viagens!
Uns por terra partiam e estalagens,
Outros, aos montes, no convez d'um brigue!

So um havia, triste e sem fallar
Que arrastava a maior misantropia,
E, roxo como um figado, bebia
O vinho tinto que eu mandava dar!

Pobre da minha geracao exangue
De ricos! Antes, como os abrutados,
Andar com uns sapatos encebados,
E ter riqueza chimica no sangue!

       *       *       *       *       *

Mas hoje a rustica lavoura, quer
Seja o patrao, quer seja o jornaleiro,
Que inferno! Em vao o lavrador rasteiro
E a filharada lidam, e a mulher!...

Desde o principio ao fim e uma macada
De mil demonios! Torna-se preciso
Ter-se muito vigor, muito juizo
Para trazer a vida equilibrada!

Hoje eu sei quanto custam a criar
As cepas, desde que eu as podo e empo.
Ah! O campo nao e um passatempo
Com bucolismos, rouxinoes, luar.

A nos tudo nos rouba e nos dizima:
O rapazio, o imposto, as pardaladas,
As osgas peconhentas, achatadas,
E as abelhas que engordam na vindima.

E o pulgao, a lagarta, os caracoes,
E ha inda, alem do mais com que se ateima,
As intemperies, o granizo, a queima,
E a concorrencia com os hespanhoes.

Na vendas, os vinhateiros d'Almeria
Competem contra os nossos fazendeiros.
Dao frutas aos leiloes dos estrangeiros,
Por uma cotacao que nos desvia!

Pois tantos contras, rudes como sao,
Forte e teimoso, o camponez destroe-os!
Venham de la pesados os comboyos
E os "buques" estivados no porao!

Nao, nao e justo que eu a culpa lance
Sobre estes nadas! Puras bagatellas!
Nos nao vivemos so de coisas bellas,
Nem tudo corre como n'um romance!

Para a Terra parir hade ter dor,
E e para obter as asperas verdades,
Que os agronomos cursam nas cidades,
E, a sua custa, aprende o lavrador.

Ah! Nao eram insectos nem as aves
Que nos dariam dias tao difficeis,
Se vos, sabios, na gente descobrisseis
Como se curam as doencas graves.

Nao valem nada a cava, a enxofra, e o mais!
Difficultoso trato das cearas!
Lutas constantes sobre as jornas caras!
Compras de bois nas feiras annuaes!

O que a alegria em nos destroe e mata,
Nao e rede arrastante d'escalracho,
Nem e "suao" queimante como um facho,
Nem invasoes bulhosas d'herva pata.

Podia ter seccado o poco em que eu
Me debrucava e te pregava sustos,
E mais as hervas, arvores e arbustos
Que--tanta vez!--a tua mao colheu.

"Molestia negra" nem "charbon" nao era,
Como um archote incendiando as parras!
Tao pouco as bastas e invisiveis garras,
Da enorme legiao do phylloxera!

Podiam mesmo, com o que contem,
Os muros ter caido as invernias!
Somos fortes! As nossas energias
Tudo vencem e domam muito bem!

Que os rios, sim, que como touros mugem,
Transbordando atulhassem as regueiras!
Chorassem de resina as larangeiras!
Ennegrecessem outras com ferrugem!

As turvas cheias de novembro, em vez
Do nateiro subtil que fertilisa,
Fossem a inundacao que tudo pisa,
No rebanho afogassem muita rez!

Ah! N'esse caso pouco se perdera,
Pois isso tudo era um pequeno damno,
A vista do cruel destino humano
Que os dedos te fazia como cera!

Era essa tysica em terceiro grau,
Que nos enchia a todos de cuidado,
Te curvava e te dava um ar alado
Como quem vae voar d'um mundo mau.

Era a desolacao que inda nos mina
(Porque o fastio e bem peior que a fome)
Que a meu pai deu a curva que a consome,
E a minha mae cabellos de platina.

Era a chlorose, esse tremendo mal,
Que desertou e que tornou funesta
A nossa branca habitacao em festa
Reverberando a luz meridional.

Nao desejemos,--nos os sem defeitos,--
Que os tysicos perecam! Ma theoria,
Se pelos meus o apuro principia,
Se a Morte nos procura em nossos leitos!

A mim mesmo, que tenho a pretensao
De ter saude, a mim que adoro a pompa
Das forcas, pode ser que se me rompa
Uma arteria, e me mine uma lesao.

Nos outros, teus irmaos, teus companheiros,
Vamos abrindo um matagal de dores!
E somos rijos como os serradores!
E positivos como os engenheiros!

Porem, hostis, sobresaltados, sos,
Os homens architectam mil projectos
De victoria! E eu duvido que os meus netos
Morram de velhos como os meus avos!

Porque, parece, ou fortes ou velhacos
Serao apenas os sobreviventes;
E ha pessoas sinceras e clementes,
E troncos grossos com seus ramos fracos!

E que fazer se a geracao decae!
Se a seiva genealogica se gasta!
Tudo empobrece! Extingue-se uma casta!
Morre o filho primeiro do que o pai!

Mas seja como for, tudo se sente
Da tua ausencia! Ah! como o ar nos falta,
O flor cortada, susceptivel, alta,
Que assim seccaste prematuramente!

Eu que de vezes tenho o desprazer
De reflectir no tumulo! E medito
No eterno Incognoscivel infinito,
Que as ideas nao podem abranger!

Como em paul em que nem cresca a junca
Sei d'almas estagnadas! Nos absortos,
Temos ainda o culto pelos Mortos,
Esses ausentes que nao voltam nunca!

Nos ignoramos, sem religiao,
Ao rasgarmos caminho, a fe perdida,
Se te vemos ao fim d'esta avenida
Ou essa horrivel aniquilacao!...

E o minha martyr, minha virgem, minha
Infeliz e celeste creatura,
Tu lembras-nos de longe a paz futura,
No teu jazigo, como uma santinha!

E emquanto a mim, es tu que substitues
Todo o mysterio, toda a santidade,
Quando em busca do reino da verdade
Eu ergo o meu olhar aos ceos azues!


III

Tinhamos nos voltado a capital maldicta,
Eu vinha de polir isto tranquillamente,
Quando nos seccedeu uma cruel desdita,
Pois um de nos caiu, de subito, doente.

Uma tuberculose abria-lhe cavernas!
Da-me rebate ainda o seu tossir profundo!
E eu sempre lembrarei, triste, as palavras ternas,
Com que se despediu de todos e do mundo!

Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!
Nao sei d'um infortunio immenso como o seu!
Vio o seu fim chegar como um medonho muro,
E, sem querer, afflicto e attonito, morreu!

De tal maneira que hoje, eu desgostoso e azedo
Como tanta crueldade e tantas injusticas,
Se inda trabalho e como os presos no degredo,
Com planos de vinganca e ideas insubmissas.

E agora, de tal modo a minha vida e dura,
Tenho momentos maus, tao tristes, tao perversos,
Que sinto so desdem pela litteratura,
E ate desprezo e esqueco os meus amados versos!



PROVINCIANAS


I

Ola! Bons dias! Em marco
Que mocetona e que joven
A terra! Que amor esparso
Corre os trigos, que se movem
As vagas d'um verde garco!

Como amanhece! Que meigas
As horas antes de almoco!
Fartam-se as vaccas nas veigas
E um pasto orvalhado e moco
Produz as novas manteigas.

Toda a paizagem se doura;
Tibida ainda, que frecas!
Bella mulher, sim senhora,
N'esta manha pittoresca,
Primaveral, creadora!

Bom sol! As sebes d'encosto
Dao madresilvas cheirosas
Que entotecem como um mosto
Floridas, as espinhosas
Subio-lhes o sangue ao rosto.

Cresce o relevo dos montes,
Como seios offegantes;
Murmuram como umas fontes
Os rios que dias antes
Bramiam galgando pontes.

E os campos, milhas e milhas,
Com povos d'espaco a espaco,
Fazem-se as mil maravilhas;
Dir-se-ia o mar de sargaco
Glauco, ondulante, com ilhas!

Pois bem. O inverno deixou-nos.
E certo. E os graos e as sementes
Que ficam d'outros outonos
Acordam hoje frementes
Depois d'uns poucos de somnos.

Mas nem tudo sao descantes
Por esses longos caminhos
Entre favaes palpitantes
Ha solos bravos, maninhos,
Que expulsam seus habitantes!

E n'esta quadra d'amores
Que emigram os jornaleiros
Ganhoes e trabalhadores!
Passam clans de forasteiros
Nas terras de lavradores.

Tal como existem mercados
Ou feiras, semanalmente
Para comprarmos os gados
Assim ha pracas de gente
Pelos domingos calados!

Emquanto a ovelha arredonda,
Vao tribus de sete filhos,
Por varzeas que fazem onda,
Para as derregas dos milhos
E molhadellas da monda.

De roda pulam borregos;
Enchem entao as cardosas
As mocas d'esses labregos
Com altas botas bartrosas
De se atirarem aos regos!

Eil-as que vem as manadas
Com caras de soffrimento,
Nas grandes marchas forcadas!
Vem ao trabalho, ao sustento,
Com fouces, sachos, enchadas!

Ai o palheiro das servas
Se o feitor lhe tira as chaves!
Ellas chegam as catervas,
Quando acasalam as aves
E se fecundam as hervas!...


II

Ao meio dia na cama,
Branca fidalga o que julga
Das pequenas da su'ama?!
Vivem minadas da pulga
Negras do tempo e da lama.

Nao e caso que a commova
Ver suas irmans de leite,
Quer faca frio, quer chova,
Sem uma mama que as deite
Na tepidez d'um alcova?!

Nota: Incompleta esta poesia. Foram os ultimos versos do poeta.


NOTAS

Cesario Verde (Jose Joaquim Cesario Verde) nasceu em Lisboa,
freguesia da Magdalena, em 25 de fevereiro de 1855 e falleceu no
Paco do Lumiar em 19 de julho de 1886. Era filho  do sr. Jose
Anastacio Verde, negociante, e da sr. D. Maria da Piedade dos
Santos Verde.

       *       *       *       *       *

A estreia do poeta nos dominios da publicidade data de 1873. Foi
o auctor d'estas notas e editor d'este livro quem fez publicar no
Diario da Tarde do Porto, em folhetim, os primeiros versos de Cesario
Verde, precedendo-os de uma carta de apresentacao a Manoel d'Arriaga.
Esses versos nao se reproduzem no livro de Cesario Verde, porque o
poeta os considerou muito inferiores aos que hoje se reproduzem.
Realmente o eram--pela hesitacao do neophyto.

       *       *       *       *       *

Outros versos foram condemnados pelo auctor e a condemnacao foi hoje
respeitada: entre elles citaremos a Satyra ao Diario Illustrado, as
poesias Vaidosa, Subindo, Desastre, e algumas outras composicoes de
menos folego.

       *       *       *       *       *

No Prefacio registra-se a promessa de um estudo critico sobre a Obra
de Cesario Verde. Essa obra, dispersa nas columnas do Diario da
tarde, do Porto, da Renascenca, da Revista de Coimbra, da Tribuna,
da Illustracao, etc., nao sera discutida pelo auctor d'estas linhas.
Nao e hoje discutida, nem o sera jamais. Sobeja-lhe, ao auctor da
promessa, em enternecimento e amargura quanto lhe falta em serenidade;
--ficam auctorizados a dizer: quanto lhe falta em competencia.

Tambem se registrou algures a promessa de um ajuste de contas com
os insultadores do poeta. Inutil:--nenhum d'elles sobreviveu aos
insultos.

       *       *       *       *       *

Os 200 exemplares d'este livro serao distribuidos pelos parentes,
pelos amigos e pelos admiradores provados do illustre poeta, bem
como por Bibliothecas do paiz e do estrangeiro. A lista de distribuicao
sera publicada. As reclamacoes justificadas serao attendidas.

1887.

S. P.


INDICE

Dedicatoria
Prefacio

VERSOS

CRISE ROMANESCA

Deslumbramentos
Septentrional
Meridional
Ironias do Desgosto
Humilhacoes
Responso

NATURAES

Contrariedades
A debil
N'um bairro moderno
Crystalisacoes
Noites gelidas
Sardenta
Flores velhas
Noite fechada
Manhans brumosas
Frigida
De verao
O sentimento d'um occidental
De tarde
Em petiz
Nos
Provincianas

Notas





End of Project Gutenberg's O Livro de Cesario Verde, by Cesario Verde

*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O LIVRO DE CESARIO VERDE ***

This file should be named 7olcv10.txt or 7olcv10.zip
Corrected EDITIONS of our eBooks get a new NUMBER, 7olcv11.txt
VERSIONS based on separate sources get new LETTER, 7olcv10a.txt

Produced Joao Miguel Neves from images of the National Digital
Library project from the National Library of Portugal.

Project Gutenberg eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the US
unless a copyright notice is included.  Thus, we usually do not
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.

We are now trying to release all our eBooks one year in advance
of the official release dates, leaving time for better editing.
Please be encouraged to tell us about any error or corrections,
even years after the official publication date.

Please note neither this listing nor its contents are final til
midnight of the last day of the month of any such announcement.
The official release date of all Project Gutenberg eBooks is at
Midnight, Central Time, of the last day of the stated month.  A
preliminary version may often be posted for suggestion, comment
and editing by those who wish to do so.

Most people start at our Web sites at:
http://gutenberg.net or
http://promo.net/pg

These Web sites include award-winning information about Project
Gutenberg, including how to donate, how to help produce our new
eBooks, and how to subscribe to our email newsletter (free!).


Those of you who want to download any eBook before announcement
can get to them as follows, and just download by date.  This is
also a good way to get them instantly upon announcement, as the
indexes our cataloguers produce obviously take a while after an
announcement goes out in the Project Gutenberg Newsletter.

http://www.ibiblio.org/gutenberg/etext03 or
ftp://ftp.ibiblio.org/pub/docs/books/gutenberg/etext03

Or /etext02, 01, 00, 99, 98, 97, 96, 95, 94, 93, 92, 92, 91 or 90

Just search by the first five letters of the filename you want,
as it appears in our Newsletters.


Information about Project Gutenberg (one page)

We produce about two million dollars for each hour we work.  The
time it takes us, a rather conservative estimate, is fifty hours
to get any eBook selected, entered, proofread, edited, copyright
searched and analyzed, the copyright letters written, etc.   Our
projected audience is one hundred million readers.  If the value
per text is nominally estimated at one dollar then we produce $2
million dollars per hour in 2002 as we release over 100 new text
files per month:  1240 more eBooks in 2001 for a total of 4000+
We are already on our way to trying for 2000 more eBooks in 2002
If they reach just 1-2% of the world's population then the total
will reach over half a trillion eBooks given away by year's end.

The Goal of Project Gutenberg is to Give Away 1 Trillion eBooks!
This is ten thousand titles each to one hundred million readers,
which is only about 4% of the present number of computer users.

Here is the briefest record of our progress (* means estimated):

eBooks Year Month

    1  1971 July
   10  1991 January
  100  1994 January
 1000  1997 August
 1500  1998 October
 2000  1999 December
 2500  2000 December
 3000  2001 November
 4000  2001 October/November
 6000  2002 December*
 9000  2003 November*
10000  2004 January*


The Project Gutenberg Literary Archive Foundation has been created
to secure a future for Project Gutenberg into the next millennium.

We need your donations more than ever!

As of February, 2002, contributions are being solicited from people
and organizations in: Alabama, Alaska, Arkansas, Connecticut,
Delaware, District of Columbia, Florida, Georgia, Hawaii, Illinois,
Indiana, Iowa, Kansas, Kentucky, Louisiana, Maine, Massachusetts,
Michigan, Mississippi, Missouri, Montana, Nebraska, Nevada, New
Hampshire, New Jersey, New Mexico, New York, North Carolina, Ohio,
Oklahoma, Oregon, Pennsylvania, Rhode Island, South Carolina, South
Dakota, Tennessee, Texas, Utah, Vermont, Virginia, Washington, West
Virginia, Wisconsin, and Wyoming.

We have filed in all 50 states now, but these are the only ones
that have responded.

As the requirements for other states are met, additions to this list
will be made and fund raising will begin in the additional states.
Please feel free to ask to check the status of your state.

In answer to various questions we have received on this:

We are constantly working on finishing the paperwork to legally
request donations in all 50 states.  If your state is not listed and
you would like to know if we have added it since the list you have,
just ask.

While we cannot solicit donations from people in states where we are
not yet registered, we know of no prohibition against accepting
donations from donors in these states who approach us with an offer to
donate.

International donations are accepted, but we don't know ANYTHING about
how to make them tax-deductible, or even if they CAN be made
deductible, and don't have the staff to handle it even if there are
ways.

Donations by check or money order may be sent to:

Project Gutenberg Literary Archive Foundation
PMB 113
1739 University Ave.
Oxford, MS 38655-4109

Contact us if you want to arrange for a wire transfer or payment
method other than by check or money order.

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation has been approved by
the US Internal Revenue Service as a 501(c)(3) organization with EIN
[Employee Identification Number] 64-622154.  Donations are
tax-deductible to the maximum extent permitted by law.  As fund-raising
requirements for other states are met, additions to this list will be
made and fund-raising will begin in the additional states.

We need your donations more than ever!

You can get up to date donation information online at:

http://www.gutenberg.net/donation.html


***

If you can't reach Project Gutenberg,
you can always email directly to:

Michael S. Hart <hart@pobox.com>

Prof. Hart will answer or forward your message.

We would prefer to send you information by email.


**The Legal Small Print**


(Three Pages)

***START**THE SMALL PRINT!**FOR PUBLIC DOMAIN EBOOKS**START***
Why is this "Small Print!" statement here? You know: lawyers.
They tell us you might sue us if there is something wrong with
your copy of this eBook, even if you got it for free from
someone other than us, and even if what's wrong is not our
fault. So, among other things, this "Small Print!" statement
disclaims most of our liability to you. It also tells you how
you may distribute copies of this eBook if you want to.

*BEFORE!* YOU USE OR READ THIS EBOOK
By using or reading any part of this PROJECT GUTENBERG-tm
eBook, you indicate that you understand, agree to and accept
this "Small Print!" statement. If you do not, you can receive
a refund of the money (if any) you paid for this eBook by
sending a request within 30 days of receiving it to the person
you got it from. If you received this eBook on a physical
medium (such as a disk), you must return it with your request.

ABOUT PROJECT GUTENBERG-TM EBOOKS
This PROJECT GUTENBERG-tm eBook, like most PROJECT GUTENBERG-tm eBooks,
is a "public domain" work distributed by Professor Michael S. Hart
through the Project Gutenberg Association (the "Project").
Among other things, this means that no one owns a United States copyright
on or for this work, so the Project (and you!) can copy and
distribute it in the United States without permission and
without paying copyright royalties. Special rules, set forth
below, apply if you wish to copy and distribute this eBook
under the "PROJECT GUTENBERG" trademark.

Please do not use the "PROJECT GUTENBERG" trademark to market
any commercial products without permission.

To create these eBooks, the Project expends considerable
efforts to identify, transcribe and proofread public domain
works. Despite these efforts, the Project's eBooks and any
medium they may be on may contain "Defects". Among other
things, Defects may take the form of incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other
intellectual property infringement, a defective or damaged
disk or other eBook medium, a computer virus, or computer
codes that damage or cannot be read by your equipment.

LIMITED WARRANTY; DISCLAIMER OF DAMAGES
But for the "Right of Replacement or Refund" described below,
[1] Michael Hart and the Foundation (and any other party you may
receive this eBook from as a PROJECT GUTENBERG-tm eBook) disclaims
all liability to you for damages, costs and expenses, including
legal fees, and [2] YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE OR
UNDER STRICT LIABILITY, OR FOR BREACH OF WARRANTY OR CONTRACT,
INCLUDING BUT NOT LIMITED TO INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE
OR INCIDENTAL DAMAGES, EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE
POSSIBILITY OF SUCH DAMAGES.

If you discover a Defect in this eBook within 90 days of
receiving it, you can receive a refund of the money (if any)
you paid for it by sending an explanatory note within that
time to the person you received it from. If you received it
on a physical medium, you must return it with your note, and
such person may choose to alternatively give you a replacement
copy. If you received it electronically, such person may
choose to alternatively give you a second opportunity to
receive it electronically.

THIS EBOOK IS OTHERWISE PROVIDED TO YOU "AS-IS". NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, ARE MADE TO YOU AS
TO THE EBOOK OR ANY MEDIUM IT MAY BE ON, INCLUDING BUT NOT
LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A
PARTICULAR PURPOSE.

Some states do not allow disclaimers of implied warranties or
the exclusion or limitation of consequential damages, so the
above disclaimers and exclusions may not apply to you, and you
may have other legal rights.

INDEMNITY
You will indemnify and hold Michael Hart, the Foundation,
and its trustees and agents, and any volunteers associated
with the production and distribution of Project Gutenberg-tm
texts harmless, from all liability, cost and expense, including
legal fees, that arise directly or indirectly from any of the
following that you do or cause:  [1] distribution of this eBook,
[2] alteration, modification, or addition to the eBook,
or [3] any Defect.

DISTRIBUTION UNDER "PROJECT GUTENBERG-tm"
You may distribute copies of this eBook electronically, or by
disk, book or any other medium if you either delete this
"Small Print!" and all other references to Project Gutenberg,
or:

[1]  Only give exact copies of it.  Among other things, this
     requires that you do not remove, alter or modify the
     eBook or this "small print!" statement.  You may however,
     if you wish, distribute this eBook in machine readable
     binary, compressed, mark-up, or proprietary form,
     including any form resulting from conversion by word
     processing or hypertext software, but only so long as
     *EITHER*:

     [*]  The eBook, when displayed, is clearly readable, and
          does *not* contain characters other than those
          intended by the author of the work, although tilde
          (~), asterisk (*) and underline (_) characters may
          be used to convey punctuation intended by the
          author, and additional characters may be used to
          indicate hypertext links; OR

     [*]  The eBook may be readily converted by the reader at
          no expense into plain ASCII, EBCDIC or equivalent
          form by the program that displays the eBook (as is
          the case, for instance, with most word processors);
          OR

     [*]  You provide, or agree to also provide on request at
          no additional cost, fee or expense, a copy of the
          eBook in its original plain ASCII form (or in EBCDIC
          or other equivalent proprietary form).

[2]  Honor the eBook refund and replacement provisions of this
     "Small Print!" statement.

[3]  Pay a trademark license fee to the Foundation of 20% of the
     gross profits you derive calculated using the method you
     already use to calculate your applicable taxes.  If you
     don't derive profits, no royalty is due.  Royalties are
     payable to "Project Gutenberg Literary Archive Foundation"
     the 60 days following each date you prepare (or were
     legally required to prepare) your annual (or equivalent
     periodic) tax return.  Please contact us beforehand to
     let us know your plans and to work out the details.

WHAT IF YOU *WANT* TO SEND MONEY EVEN IF YOU DON'T HAVE TO?
Project Gutenberg is dedicated to increasing the number of
public domain and licensed works that can be freely distributed
in machine readable form.

The Project gratefully accepts contributions of money, time,
public domain materials, or royalty free copyright licenses.
Money should be paid to the:
"Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

If you are interested in contributing scanning equipment or
software or other items, please contact Michael Hart at:
hart@pobox.com

[Portions of this eBook's header and trailer may be reprinted only
when distributed free of all fees.  Copyright (C) 2001, 2002 by
Michael S. Hart.  Project Gutenberg is a TradeMark and may not be
used in any sales of Project Gutenberg eBooks or other materials be
they hardware or software or any other related product without
express permission.]

*END THE SMALL PRINT! FOR PUBLIC DOMAIN EBOOKS*Ver.02/11/02*END*